18 de out. de 2011

A cadeia é pior do que zoológico ( Roberto Podval)

A cadeia é pior do que zoológico

ROBERTO PODVALO advogado do caso Isabella diz que os presos no Brasil vivem em condições subumanas, quer o CNJ punindo juízes e explica a ressurgência dos crimes econômicos
Aos 45 anos, o paulista Robertoo Podval é um dos mais ocupados advogados criminalistas do Brasil. Ele pertence a uma geração de profissionais que tem encontrado trabalho com facilidade não pelo aumento da quantidade de crimes de sangue, mas como resultado das grandes e frequentes operações da Polícia Federal contra os autores de crimes econômicos. "A PF ressurgiu, e os casos de crimes econômicos não apenas se multiplicaram como ficaram muito mais complexos", diz Podval. Na sala de espera de seu escritório, chama atenção um quadro que retrata a invasão de uma fazenda por integrantes do movimento dos sem-terra, o MST. Por que dependurar em um escritório de advocacia a imagem de um crime sendo perpetrado? Ele explica: "Eu advogo para o MST sem cobrar nada. Acho que é parte do papel social do advogado atuar gratuitamente em certas causas. O MST também precisa de defensores na Justiça, e convivo bem com diferenças".
É preciso acreditar na inocência de um réu para defendê-lo? 
Não. É preciso acreditar que as pessoas têm o direito de ser defendidas. Esse é um dos pilares do estado democrático. Isso é parte do sistema de justiça. Eu acredito nesse sistema. Mas o sistema só funciona quando os dois lados estão equiparados. Minha tarefa como advogado é equilibrar a balança. Fazer com que a defesa tenha a mesma estatura que a acusação e, desse modo, ajudar a garantir que o sistema processual funcione e faça justiça. Sem o processo, não existe justiça.
As penas previstas na legislação brasileira não são brandas demais?  Quem conhece a realidade das nossas cadeias - e talvez pouca gente conheça – sabe o que é passar um dia, um mês, um ano ali. As pessoas são trancafiadas de forma desumana. Até no zoológico os animais têm melhor tratamento. Não é incomum o fato de pessoas morrerem por falta de ar, por falta de espaço físico mínimo para sobreviver. Em muitas cadeias, os presos precisam se revezar para conseguir se deitar e alguns ficam em pé enquanto outros dormem. A punição de cadeia no país é tão desumana, tão exagerada, que eu diria que qualquer pena de prisão já é por si só um exagero no Brasil.
A expressão "bandidos de toga" reflete uma situação real? Acredito que haja juízes corruptos, como há advogados corruptos,  promotores  corruptos e procuradores corruptos. São pessoas - e as pessoas podem ser boas, mas podem também ser ruins.
O senhor já atuou em algum caso em que o juiz se mostrou corrupto?
Nunca. Eu tenho uma reputação de seriedade que prezo muito, e isso me coloca sempre em outra rota. Juízes corruptos devem trabalhar com advogados corruptos, com policiais corruptos.
As pessoas procuram seus iguais. Mas, é óbvio, não vou ser ingênuo de dizer que não existe corrupção. Existe. Já vi também muita gente tentar vender fumaça, gente que telefona e se diz capaz de conseguir alguma vantagem ou influenciar uma sentença.
Discutem-se agora os limites da atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na apuração desses casos. Como o senhor se posiciona?
A Corregedoria do CNJ funciona porque, além de ser constituída por magistrados, é composta de representantes do Ministério Público, dos advogados, do povo. Com isso, ela fica arejada, menos corporativa. Nas corregedorias dos estados só há desembargadores. Vamos abri-las e replicar o modelo do CNJ. Seria muito positivo.
Os advogados deveriam ter mais espaço no Supremo, assumindo cadeiras de ministros? Que advogado vai deixar sua banca para assumir uma cadeira no Supremo ganhando menos de 30.000 reais por mês? O teto do Judiciário é ridículo. O salário não é compatível com a missão.
Na prateleira atrás da sua mesa há várias pilhas de moedas, organizadas pelo valor. O senhor conta até os centavos?  Comecei de baixo. Meu primeiro escritório era só uma portinha, não tinha nem secretária, para economizar. Trabalhei de graça para um vereador só para usar o estacionamento da Câmara. Almoçava sanduíche de linguiça na Praça da Sé. Era um advogado de porta de cadeia, literalmente. Pedia a delegados amigos que me indicassem para qualquer preso que aparecesse. Ia de madrugada até as delegacias arranjar cliente. Olhava o sujeito, dava meu cartão, via quanto ele podia pagar e ia tentar soltá-lo. Dou valor ao dinheiro. No começo, fazia qualquer audiência que aparecesse, de gente sem recursos, sem cobrar. Assim eu facilitava a vida dos juízes, pois eles podiam dar andamento aos processos já que o advogado, eu, estava sempre presente. Aprendi muito nesse começo de carreira. As pessoas me viam todo dia no fórum correndo para cima e para baixo, cheio de processos nas mãos, e pensavam: "Tão jovem e já tem tantos clientes". Assim, fui ganhando nome e reputação. Naquele tempo, fazia só crime de sangue. Ainda não havia no Brasil os crimes econômicos, os grandes crimes.
O que mudou? Embora já houvesse a legislação, na prática esses crimes econômicos quase não existiam, porque raramente eram investigados.
A Polícia Federal estava desmobilizada. A PF ressurgiu na última década. Houve mudança de pessoas, de mentalidade e de cultura. Com isso, ressurgiu também a investigação dos crimes econômicos. Isso abriu um mercado novo para nós. Os escritórios de advocacia criminal eram pequenos, com duas ou três pessoas. Hoje, ficaram enormes. E precisam ser assim: a cada inquérito da Polícia Federal, você tem 100 volumes só de escutas telefônicas. Alguém precisa ler tudo isso. As investigações se tomaram extensas, complexas.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) está cumprindo bem seu papel? Posso falar por São Paulo. Aqui a OAB não está funcionando. Cansei de ver nossa classe desamparada e vou tentar me eleger presidente da seção paulista da ordem. Há muito que fazer para melhorar as condições de trabalho dos advogados. Vou lhe dar um exemplo: para entrar em um fórum criminal em São Paulo, pego a fila, tenho de mostrar  a carteira profissional, passar por detector de metal e abrir minha pasta para que um segurança a reviste.  Se sou tratado assim no meu local de trabalho, algo está errado.
O que a Ordem dos Advogados faz sobre isso? 
Nada.
O exame da OAB deve continuar rigoroso como é hoje?
É necessário que seja assim. No mundo ideal o exame seria dispensável. As pessoas entrariam na faculdade, se formariam e sairiam aptas a exercer a advocacia. Mas na vida real não é isso que ocorre. Gosto da ideia de medir e divulgar a porcentagem de alunos de cada faculdade aprovados no exame da OAB. Se uma determinada faculdade teve 95% de seus alunos aprovados no exame da ordem e outra aprovou apenas 5%, parece-me óbvio que esse ranking vai influenciar a decisão do vestibulando sobre onde ele vai querer se formar em direito. Nesse cenário, o próprio mercado tenderia a corrigir as distorções, pois as faculdades certamente tentariam melhorar seu ensino para aprovar mais alunos, subir no ranking e atrair estudantes.
Por que o senhor aceitou uma causa perdida, a defesa de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados pela morte da menina lsabella? 
A vida inteira justifiquei meu trabalho com o mesmo argumento de defender as pessoas porque todos merecem uma defesa; porque temos de lutar contra a força do estado. De repente, aparece um caso que o coloca diante disso, mas ameaça sua imagem. Não aceitaria por quê? Por que o valor não era compatível com o risco da imagem? Por saber que eu iria perder o maior caso do país? Aceitar foi uma forma de me certificar do papel imprescindível que o advogado tem no processo judicial.
O senhor nunca achou que poderia ganhar?
Não. A causa era perdida. A opinião pública estava tomada pela convicção de que eles precisavam ser condenados.
O senhor se convenceu da inocência dos dois?
Estou convencido de que não se fez justiça.
Mas o senhor afirmaria que eles são inocentes?
Não posso afirmar que Alexandre Nardoni e Anna Jatobá são inocentes. Mas também não posso afirmar que são culpados. A verdade é que ninguém sabe o que se passou. Talvez - eu disse talvez -, só os dois, se é que eles estavam no local. Com as provas que existem, é possível construir quatro narrativas: a culpa foi dele, a culpa foi dela, a culpa foi de um terceiro ou foi um acidente. As quatro histórias são verossímeis.
O senhor perguntou se eles mataram lsabella? Várias vezes. Eles dizem que são inocentes. Não tenho por que duvidar disso. São duas pessoas que, de forma absolutamente coerente, por um tempo enorme, se mantêm fiéis à mesma narrativa. Ninguém mudou a declaração, culpou o outro, nada. A versão foi sempre a mesma.
Como o senhor acha que foi a morte de lsabella? Não sei. Vou esperar o fim do caso. Tenho certeza de que os tribunais superiores saberão reavaliar o processo com uma visão menos parcial. Estamos no meio do caminho.
"Meio do caminho"? O caso já não está encerrado?
Já conseguimos diminuir um pouco a pena do Alexandre. Agora, estamos subindo com recursos para o Superior Tribunal de Justiça, depois vamos para o Supremo Tribunal Federal. Vou levantar uma tese interessante, talvez nunca colocada neste país, que é centrada na impossibilidade de certos júris produzirem um julgamento imparcial. A realidade é que todo mundo sabia que não era possível realizar o júri deles de forma imparcial. Eles já estavam condenados pela opinião pública.
O promotor Francisco Cembranelli foi melhor do que o senhor? Ele ganhou.  Se ganhou, foi melhor. Ele tem uma absoluta noção de tempo, de fala, de quando começar e acabar. Ele foi brilhante. Não apenas no júri, mas desde o primeiro dia do caso. Montou a acusação desde o primeiro momento. Esse caso foi feito por ele, e o resultado foi o que ele buscou. Eu respeito isso.
Perder aquele júri foi muito duro? 
O júri acabou numa sexta-feira. Fiquei mal, não consegui dormir, passei o sábado péssimo. Só melhorei no domingo, quando o pai do Alexandre me telefonou e disse que o filho tinha pedido a ele para me agradecer. Disse que não havia se sentido tão protegido, defendido e amparado desde o começo desse caso. Pensei: cumpri o meu papel. Isso é defender alguém. Foi uma alegria. Se eu tivesse de me aposentar depois daquele telefonema, poderia ter feito isso com a sensação de missão cumprida. Mas insisto: não é justo esse caso acabar assim. Estou certo de que nossa Justiça não permitirá que acabe dessa maneira. Vou lutar para que seja feita justiça de verdade.
Entre os convidados para seu casamento, na Ilha de Capri, na Itália, estava um ministro do STF, José Antonio Dias Toffoli. Foi uma atitude adequada?
O episódio suscitou insinuações maldosas e falsas. Casei-me em Capri porque a família da minha mulher é da Itália. Eu queria fazer uma coisa pequena, íntima, informal. Convidamos 100 amigos e oferecemos duas diárias em um hotel na ilha a cada um. Só isso. Toffoli e eu somos amigos há muitos anos, desde que me formei. Não poderia deixar de convidá-lo. Ele pagou a própria passagem. Quem me conhece sabe que não sou de fazer lobby nem política. Fosse essa a intenção, eu teria convidado todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Toffoli participou do julgamento de apenas um processo em que fui o advogado. Eu perdi por 3 votos a 2. Um dos votos contrários a mim foi  justamente de Toffoli.
Fonte: Sergyovitro

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