I - Introdução: por uma nova cartografia
Conhecer é construir mapas e os
registros cartográficos de territórios novos são quase sempre muito limitados[2]. E, embora possa parecer incrível para alguns, a resolução
de conflitos é um campo novo para o direito, o que faz com que os mapas
teóricos de que dispomos para lidar com essa questão ainda sejam demasiadamente
inseguros.
Embora
o direito sempre tenha lidado com conflitos, faz muito pouco tempo que os
juristas passaram a entender que esse é um objeto merecedor de reflexões
específicas. A história do conhecimento é repleta de situações como essa:
passamos séculos lidando com uma realidade que, pelos mais variados motivos,
não é tematizada pelas nossas reflexões. A escravidão, a homossexualidade, a
preservação ambiental, a liberdade de crença, o direito das mulheres a um
tratamento igualitário, durante muito tempo esses temas simplesmente estiveram
excluídos dos estudos sistemáticos que normalmente chamamos de ciência ou
filosofia. Em um dado momento, esses fatos passaram a ser entendidos como
problemas, ou seja, como fontes de indagações que merecem ser respondidas.
Para
que um determinado objeto se transforme em um problema, é necessário que nos
tornemos conscientes de que o modo tradicional de lidarmos com eles talvez não
seja o mais adequado. Essa percepção de que algo poderia ser diferente em
nossas visões em nosso comportamento costuma estimular, ao menos em algum, a
busca de construir novos padrões teóricos e práticos para lidar com velhos
fenômenos, vistos de forma renovada.
O
conflito normalmente era visto pelos juristas como aquilo que deve ser
combatido, pois uma das funções primordiais do direito é resolver os conflitos
sociais. Esses conflitos são
inevitáveis, dado que a existência de divergências de interesses é inerente a
uma sociedade formada por indivíduos autônomos. Porém, a única reação adequada
ao conflito é busca de sua anulação, dado que a sociedade harmônica é aquela em
que não há conflitos e tensões.
E como
o direito pode anular os conflitos? A estratégia jurídica básica é a de
estabelecer juízes, que decidem os conflitos mediante sua autoridade. Mas, em
uma sociedade de homens iguais, os juízes não podem decidir de acordo com suas
convicções pessoais, mas precisam aplicar padrões objetivos previamente
fixados. Portanto, é preciso haver normas jurídicas que estabeleçam os padrões
de julgamento.
Simplificada
de maneira quase grosseira, essa é uma descrição do direito moderno e de sua
articulação com o individualismo moderno: os indivíduos têm interesses
pessoais, esses interesses entram em choque, esses choques devem ser anulados
mediante a aplicação de regras previamente definidas e aplicadas por juízes
imparciais.
Nessa
visão de mundo, que papel pode ser reservado ao conflito? Nenhum, obviamente, a
não ser o de vilão da história. Assim, como os gregos uniram todos os
não-gregos no conceito de bárbaro, os europeus juntaram todos os povos ameríndios e africanos no
conceito de primitivos e os juristas uniram todas as tensões que ameaçavam a paz social no
conceito de conflito. Em todos esses casos, a generalidade do conceito simplesmente
desconhece as imensas diferenças entre os objetos que os compõem, pois esses
três conceitos servem para identificar simplesmente aquilo contra o que nos
opomos, aquilo que deve ser recusado, dominado ou anulado.
Essa
visão moderna está em crise, e, no campo dos conflitos, essa crise conduziu a
uma percepção crescente de que há muitas coisas escondidas sob o nome genérico
de conflitos. Tensões dos mais variados tipos e origens, com os mais variados
modos de desenlace, exigindo estratégias as mais diversas para o seu
enfrentamento. Essa primeira abertura gerou uma primeira onda de reflexão, na
esteira da qual surgiu o movimento de resolução alternativa de disputas (RAD).
Porém,
a própria noção de que é preciso valorizar métodos alternativos significa um reconhecimento que
o modo jurisdicional é o mecanismo padrão de resolução, pois toda alternativa é
alternativa a algum padrão. Além disso, o desenvolvimento dos métodos de RAD
deu-se dentro da concepção de que o todo conflito é uma disputa de mais de uma
pessoa acerca de um mesmo bem e que, por isso, pode ser resolvida a partir de
um acordo. Esse primeiro momento resulta, portanto, em um reconhecimento dos
limites da técnica jurídica de aplicação de normas gerais e de uma valorização
das estratégias voltadas à criação autônoma de normas individuais para a resolução
da disputa. As concepções resultantes desse momento, que ainda são dominantes,
são o que podemos chamar de modelos centrados na solução de problemas
(problem-solving models).
Porém,
a identificação do conflito com a disputa acerca de um bem (ou de uma
determinada combinação de bens) é uma concepção demasiadamente restrita da
dimensão conflituosa da vida em
sociedade. E a insistência no acordo como forma única de resolução de conflitos é
demasiadamente ligada à noção de que os conflitos são aquilo que se precisa
anular na sociedade. Com o tempo, desenvolveu-se uma percepção mais crítica
acerca das peculiaridades dos conflitos e da possibilidade de resolvê-los
mediante acordos.
Uma das
percepções fundamentais é a de que a disputa não é o conflito, mas uma
decorrência do conflito. Portanto, resolver a disputa não põe fim ao conflito
subjacente. Quando um juiz determina com quem ficará a guarda de um filho, isso
põe fim a uma determinada disputa (ou litígio, como definiremos a seguir), mas,
além de não resolver a relação conflituosa, muitas vezes acirra o próprio
conflito, criando novas dificuldades para os pais e para os filhos. Então,
torna-se claro que o conflito, ao menos em muitos casos, não pode ser resolvido
pelo acordo.
Mais
profunda que essa mudança é a percepção de que o conflito talvez não seja algo
a ser anulado, mas que as relações humanas têm uma dimensão conflitiva que as
integra. As tensões não são frutos simplesmente de interesses divergentes (ou
seja, de desejos diferentes que podem ser avaliados dentro de uma mesma visão
de mundo), mas de diferentes maneiras de perceber o mundo. Essas diferenças não
podem ser reduzidas sem violentar o direito de cada um à sua própria
identidade.
Esse direito à diferença é um dos elementos que está na base
das novas teorias sobre o conflito. Antes, a diferença era vista como algo
ruim, ou admissível apenas dentro de certos limites predeterminados, que
tendiam a reduzir a diferença imediata a uma igualdade mediata. Por exemplo:
duas pessoas envolvidas em um acidente de carro desejam coisas imediatamente
diferentes, pois nenhuma quer arcar com os danos. Mas ambas desejam o mesmo:
ser indenizadas pelo prejuízo que sofreram. Assim, muitas vezes queremos coisas
diferentes porque, no fundo, queremos a mesma coisa. Somente nessas situações
faz sentido a estratégia normativa de estabelecer critérios sobre quem tem
razão em desejar a mesma coisa (uma indenização, a propriedade de um bem, a
guarda de um filho, etc.).
Em outras palavras, a diferença somente era admissível no
tocante à disputa, mas não no tocante ao conflito. Mas o que fazer quando o
conflito não é uma disputa por um determinado bem, mas o resultado de uma
percepção diferente do mundo? Que fazer quando se confrontam um marido que
repete padrões patriarcais e uma mulher que o ama, mas tenta conquistar sua
liberdade e autonomia? Ou quando desejamos aquilo que não é quantificável, como
atenção, carinho ou um pedido de desculpas? Ou aquilo que nenhum acordo é capaz
de criar, por envolver respeito, afeto, cuidado ou qualquer coisa que envolva
um sentimento sincero? Nessas situações, os modelos de disputa falham,
justamente porque há conflito sem haver propriamente disputa. O que está em
jogo são desejos inconciliáveis por serem divergentes e não por convergirem em
relação a um bem disputado.
Outra
mudança fundamental foi a incorporação de certas tendências existentes na
filosofia desde meados do século XX, passando-se a reconhecer que a linguagem
não é apenas um instrumento para a realização de acordos de interesses[3]. Como
sintetizou Dora Schnitman, “la función primaria del lenguaje es la construcción
de mundos humanos, no simplemente la transmisión de mensajes de un lugar a
otro. La comunicación se torna así un proceso constructivo, no un mero carril
conductor de mensajes o de ideas”[4].
Com isso, a linguagem deixa de ser vista como um instrumento para negociar a
resolução disputas (visão inerente à primeira onda dos métodos RAD), pois se
passa a reconhecer que os próprios conflitos têm uma dimensão lingüística, no
sentido de que eles são constituídos pela nossa percepção das relações vividas,
que são reconstruídas lingüisticamente dentro de uma narrativa pessoal. Nessa
medida, alterar a percepção que uma pessoa tem do conflito significa modifica o
próprio conflito, pois é possível modificar o modo de comportamento entre as
pessoas nele envolvidas.
Passou-se,
então, a pensar na intervenção na própria estrutura do conflito, alterando a
dimensão simbólica da relação conflituosa (ou seja, alterando o modo como as
pessoas percebem os fatos que elas qualificam como conflituosos) e,
conseqüentemente, abrindo novas portas para a transformação dessa relação. Como
elaboramos lingüisticamente a própria realidade (ou, ao menos a linguagem é um
elemento importante na percepção do que chamamos de realidade), é possível
intervir na própria maneira como pensamos o nosso conflito. Ora, como um
conflito não existe fora da percepção (ainda que inconsciente) das pessoas,
intervir na elaboração simbólica do conflito significa promover a transformação
do conflito em si (e não apenas nos seus resultados ou conseqüências).
Esse conjunto de percepções conduz
à valorização da mediação como elemento de transformação das relações sociais
(como em Warat, Bush e Folger)[5] e ao reconhecimento do aspecto lingüístico e simbólico das
relações (como em Winslade, Monk e também em Warat[6]).
Cada uma dessas teorias oferece um
mapa diferente do terreno da resolução de conflitos. Algumas estruturas
permanecem um pouco alheias às movimentações contemporâneas (a arbitragem, por
exemplo, não sofre grandes alterações conceituais), mas outras estão sendo
constantemente mapeadas por cartógrafos que fornecem os mapas mais diferentes
(especialmente a mediação). Por tudo isso, alguém que inicia o estudo do tema
pode sentir-se bastante perdido, já que os livros vão apresentar, muitas vezes
como verdades incontestadas, definições as mais diversas de palavras como conflito,
disputa, mediação, conciliação e outras.
Por esse motivo, é inevitável
fazer um estudo dos vários mapas disponíveis e creio ser conveniente traçar um
mapa geral, que tente organizar as várias teorias como mapeamentos parciais,
dando um sentido global ao tema da resolução de conflitos. Para usar uma
terminologia mais arcaica e pretensiosa, convém elaborar uma teoria geral do
conflito.
O objetivo deste artigo é delinear
um mapa geral dos conflitos, a partir de uma perspectiva jurídica. O resultado
é certamente ainda muito lacunoso, como todo mapa de um terreno inóspito, cujas
fronteiras são controvertidas e no qual vários grupos lutam por conquistar
hegemonia. Mas creio que a atividade do teórico não pode ser outra coisa senão
esta (re)elaboração de mapas provisórios, que não se pretendem confundir com o
real[7], mas que sabem não passar de uma orientação para que os
homens possam pensar e agir em suas relações uns com os outros.
II - Reconhecimento do terreno: avaliando as diferenças entre os conflitos
A afirmação de que o direito atua
sobre os conflitos sociais talvez possa ser acolhida unanimemente pelos juristas,
especialmente porque ela é tão vaga que cada um poderia atribuir aos termos direito,
conflito e social qualquer sentido que lhe aprouvesse. De toda
forma, por mais que haja debates acerca da função específica do direito, parece
claro que ele lida com a conflituosidade social, o que indica ser conveniente
pensarmos um pouco mais a fundo sobre os conflitos e os mecanismos de que
dispomos para enfrentá-los, para que possamos mapear devidamente esse terreno.
Tomemos o exemplo de Capitu e
Bentinho, um casal de companheiros que, após anos de convívio, decidiu
separar-se, situação em que é preciso enfrentar o problema da divisão dos bens
que compunham o seu patrimônio. Nesse caso, pode ser que ambos estejam de
acordo sobre qual seria a divisão mais justa — caso em que não ocorreria
conflito específico sobre este tema —, mas também pode ser que haja divergência
acerca da divisão dos bens.
A - Agir estratégico-indiferente e agir comprometido
Havendo divergência, espera-se
normalmente que ambos conversem, mostrem os seus pontos de vista e, respeitando
as divergências de posicionamento, busquem uma saída consensual. Trata-se este
caso de uma tentativa de autocomposição, na medida em que as decisões
acerca do conflito são tomadas pelas próprias partes interessadas.
Quando existe uma contraposição de
interesses, ela muitas vezes é resolvida pelas partes mediante um processo de
busca de uma decisão consensual, na qual cada envolvido tenta mudar a opinião
do outro ou abre mão de parte de suas pretensões, na busca de alcançar um
equilíbrio de perdas e ganhos que seja minimamente satisfatório para ambos.
No caso da separação, por exemplo,
pode ser que um dos companheiros abra mão de certos discos e da mesa de jantar,
enquanto o outro abre mão de alguns livros e da estante da sala, na busca de
encontrar uma solução consensual. Observe-se que não é só a divisão patrimonial
que precisa ser definida nesses casos, pois os ex-companheiros também podem
decidir conjuntamente vários outros pontos, como definir a versão dos fatos que
será exposta para as famílias e para os amigos, ou comprometer-se a não
freqüentar certos restaurantes ou cinemas, com o fim de evitar encontros que
seriam desagradáveis para algum deles.
Nesse ponto, é bastante típico que
o jurista reduza a autocomposição a uma negociação de interesses contrapostos,
a partir de um comportamento estratégico, no qual cada uma das partes
envolvidas busca maximizar os seus próprios interesses, não estando diretamente
comprometido com a satisfação (nem com a contrariedade) do interesse dos
outros. Esse tipo de redução trabalha com um modelo individualista de matriz
utilitarista, no qual se considera que todo indivíduo tende a fazer opções
racionais no sentido de obter para si, em cada caso concreto, o máximo de
prazer e o mínimo de dor.
De acordo com tal perspectiva, se
uma das partes pensa na satisfação da outra, não é por estar comprometido com
ela, mas apenas porque um agente racional precisaria levar em consideração que
ela tenderá a aceitar a proposta que lhe for mais vantajosa[8]. Nesse tipo de modelo, que está na base tanto da teoria
econômica clássica como da teoria dos jogos tradicional, tende-se a encarar os
envolvidos no conflito como adversários e pressupõe-se que cada parte tem um
compromisso apenas com a realização dos seus próprios interesses.
Essa perspectiva, que reduz o
comportamento a um agir estratégico-indiferente aos interesses dos terceiros
envolvidos, é bastante razoável para a análise de muitos dos conflitos
juridicamente relevantes, pois há uma infinidade de casos em que as partes são
efetivamente adversários em um conflito que pode ser reduzido a um jogo de
interesses no qual cada envolvido busca maximizar seus ganhos. Nesses casos,
pode-se qualificar os conflitos como adversariais, o que ocorre
tipicamente nos casos de batida de carros entre motoristas que não se conhecem,
de bancos que buscam cobrar dívidas vencidas, de seguradoras que buscam
enquadrar uma determinada situação em uma das hipóteses que as exime de
ressarcir o segurado. Em nenhuma dessas hipóteses parecer haver muito mais que
um agir estratégico praticado por pessoas que se entendem como adversárias,
pois cada uma busca maximizar seus interesses e o ganho de uma implica quase
sempre uma perda para a outra.
Porém, reduzir todos os conflitos a esse modelo seria um
exagero, pois há também uma variedade de casos em que uma das partes tem, sim,
interesse na satisfação dos interesses da outra. Não se trata de satisfazer
parcialmente os interesses de um terceiro como uma forma de maximizar o seu
interesse individual, mas de considerar o respeito aos desejos do outro como um
objetivo autônomo. Nesse caso, o modelo ideal não seria o de dois
adversários que buscassem maximizar seus interesses particulares, ainda que em
detrimento do outro, mas de duas pessoas que buscassem criar uma situação que
seja a mais justa, maximizando o bem comum e não apenas os seus
interesses particulares.
Poderíamos
aqui falar de um agir comprometido, pois a satisfação dos interesses do
outro mostra-se como um dos objetivos relevantes das partes. Com isso, o ganho
de uma parte deixa de implicar uma perda para a outra, que não é vista como um
adversário, dado que as pessoas envolvidas têm efetivo interesse em satisfazer
os interesses do outro e não apenas os seus próprios. Talvez Capitu e Bentinho
já não mais encontrassem satisfação na vida em comum, mas continuassem
partilhando uma grande amizade, ou respeito, ou qualquer sentimento que os
fizesse ter interesse na felicidade do outro.
Cabe
ressalvar que moderna a teoria dos jogos também conta com modelos capazes de
lidar com situações que não são necessariamente adversariais e buscam
identificar soluções de maximização dos ganhos para todas as partes envolvidas,
tal como a idéia do equilibrium de Nash[9].
De toda forma, mesmo esses modelos de maximização de ganhos para o conjunto dos
interessados não ultrapassam os limites de um pensamento
estratégico-indiferente aos interesses do outro, pois reduzem todos os
interesses envolvidos a interesses individuais (ainda que seja no interesse individual
de satisfazer o outro) e, em tais modelos, o respeito aos interesses de
terceiros é entendido um meio para se tentar garantir ao máximo os interesses
individuais[10].
Assim, caracterizamos o agir
comprometimento pelo fato de que o outro é percebido como uma pessoa cujos
desejos não nos são indiferentes. Porém, não existe apenas o que poderíamos
chamar de um comprometimento positivo (voltado à satisfação do
terceiro), mas também há um comprometimento que poderíamos qualificar como
negativo, pois ele é voltado para dificultar a satisfação, ou mesmo causar
sofrimento, ao outro. Por exemplo, talvez as dificuldades de convivência entre
Capitu e Bentinho poderiam ter degenerado para um rancor tão grande que um
estivesse comprometido com causar sofrimento ao outro. Assim, o comprometimento
emocional pode fazer tanto que uma pessoa atue de forma colaborativa ou cooperativa,
quanto de forma que não é apenas adversarial, mas destrutiva[11], na medida em que uma das partes busca impedir que o outro
alcance seus interesses. De um modo ou de outro, o comprometimento insere no
conflito uma dimensão afetiva que é deixada de lado por um modelo descritivo
meramente estratégico, pois a felicidade ou o sofrimento do outro não é
indiferente para as partes em conflito.
As relações humanas, contudo, não
podem ser divididas binariamente em comportamentos indiferentes e
comprometidos, pois raramente alguém é abnegado o suficiente para não pensar no
seu bem-estar próprio[12] nem é individualista ao ponto de não ter qualquer
compromisso com os sentimentos das outras pessoas. Há vários graus de
comprometimento, ou seja, as pessoas estão dispostas a abrir mão de alguns de
seus interesses pessoais perante determinados interesses de terceiros, mas
apenas até um certo nível, que varia de acordo com as partes em conflito, os
interesses contrapostos, os valores éticos e ideológicos envolvidos, etc.
E, para tornar ainda mais complexa
a análise, devemos admitir que há casos em que satisfazer o interesse do outro
pode ser relevante de um ponto de vista estratégico (pense-se, por exemplo, em
uma sociedade comercial que pretende garantir a fidelidade e a satisfação de
seus clientes), o que geraria um agir estratégico que teria características
exteriores muito semelhantes (talvez indistinguíveis) aos de um agir
comprometido. Para designar esses casos, talvez fosse útil a expressão de um agir
pseudo-comprometido, em oposição a um agir eticamente comprometido,
pois ele adotaria todo o discurso do agir comprometido sem que houvesse
efetivamente um respeito pela pessoa do outro: apesar da tentativa de
satisfação do cliente, a felicidade dele não passaria de um objeto de avaliação
estratégica.[13]
Apesar de reconhecermos que a
distinção entre os tipos ideais agir estratégico-indiferente e agir
comprometido implica uma grande redução, acreditamos que ela oferece um bom
alicerce base para a construção de um modelo adequado e que é útil para
evidenciar algumas peculiaridades dos conflitos, especialmente na distinção
entre as espécies de autocomposição.
B - Relações unidimensionais e multidimensionais
Porém, antes de passar ao estudo
das formas de autocomposição, convém explorar as relações entre a diferenciação
dos conceitos de agir meramente estratégico e comprometido e a distinção entre
relações unidimensionais (ou de vínculo único), nas quais as pessoas envolvidas
estão ligadas por interesses pontuais, e relações multidimensionais (ou de
múltiplos vínculos, para utilizar a linguagem de Boaventura de Souza Santos[14]), em que as pessoas são ligadas, entre si e com a comunidade
circundante, por vários interesses e valores inter-relacionados, tal é
tipicamente o caso nas relações familiares, de vizinhança, de trabalho e de
amizade ou companheirismo.
É diferente deixar de pagar uma
dívida frente a um banco e deixar de pagar uma dívida a um irmão ou colega de
trabalho, pois essa inadimplência gera implicações que escapam a questão da
dívida e passam a invadir outras dimensões da vida das pessoas: o modo como ele
é percebido pelos companheiros e parentes, seu status social, sua
auto-percepção como pessoa, etc. Também é diferente cobrar a dívida de um
estranho e cobrar a dívida de um parente ou colega em dificuldades financeiras,
pois, na visão do meio social circundante, o dever jurídico possivelmente seria
mitigado por outros valores sociais, como caridade e solidariedade. Por
exemplo, cobrar na justiça uma dívida conflituosa poderia gerar conflitos nas
relações com um irmão ou um colega de turma.
As relações multidimensionais
tendem a possuir um forte componente emotivo, pois as relações sociais são
envoltas de valores (morais, religiosos, ideológicos, etc.) que geram uma forte
dimensão emotiva a conflitos que sejam gerados dentro delas. Nessa medida, o
seu enfrentamento tipicamente envolve um agir comprometido, em maior ou menor
grau, dependendo do caso. Além disso, essas relações são tipicamente
continuadas, de forma que a resolução de um conflito não encerra a convivência
entre as partes e, portanto, é sempre necessário pensar nas tensões futuras que
poderiam nascer de uma abordagem excessivamente egoística das divergências.
Já as relações de vínculo único
tendem a ter uma dimensão emocional menos acentuada[15], o que facilita a redução do comportamento a um agir
meramente estratégico. Além disso, essas relações são muitas vezes pontuais no
tempo, pois, encerrada a relação ou o conflito que nela surja, não há uma
perspectiva de convivência futura. Por exemplo, paga a dívida resultante de um
acidente de trânsito sem vítimas, as partes envolvidas no sinistro normalmente
não vêm a ter qualquer convivência futura e os resultados do comportamento
delas dificilmente teriam forte impacto nas suas outras relações sociais.
C - Conflito
e litígio
Suponha que Capitu e Bentinho não conseguiram chegar a um
acordo sobre a divisão dos bens e decidissem transferir a um amigo comum o
poder de dividir o patrimônio de uma maneira que ele julgasse adequada. Nesse
caso[16],
o casal não estaria submetendo ao amigo a solução de todo o conflito, mas
apenas de uma pequena parcela dele, sendo que essa parcela pode ser resolvida a
partir do estabelecimento de uma norma específica. Assim, o amigo foi chamado a
editar uma norma que estabelecesse uma determinada divisão de bens, que o casal
comprometeu-se a aceitar como uma regra obrigatória.
Observe-se que o amigo não foi
chamado para ajudar a resolver as várias dimensões do conflito, mas para
resolver uma questão específica que aflorou em um campo complexo de
conflituosidade, e que a autoridade do amigo limita-se a resolver um problema
pontual. Dessa forma o amigo não interveio no conflito como um todo, mas
apenas resolveu um litígio, ou seja, uma determinada faceta do conflito,
uma disputa sobre um bem determinado que pode ser solucionada por meio de uma
decisão normativa.
Por isso, resolver o litígio (ou a
disputa) não significa resolver o conflito que lhe deu origem, sendo que,
muitas vezes, a heterocomposição do litígio pode gerar novos conflitos ou
acirrar o nível existente de conflituosidade. Se, por exemplo, o amigo comum
tomasse uma decisão que desagradasse profundamente tanto a Capitu quanto a
Bentinho, a decisão do litígio terminaria por criar conflitos e não por
resolvê-los.
Se, ainda dentro da hipótese proposta, o amigo não aceitasse
a ingrata tarefa que lhe foi solicitada e Capitu decidisse levar Bentinho à
justiça, ela não poderia simplesmente dirigir ao juiz um pedido genérico, tal
como: ajude-nos a que nos separemos de uma maneira que não nos degrade e que
faça jus ao amor que tínhamos. Judicialmente, esse pedido seria entendido
simplesmente como nonsense, pois o judiciário não lida com toda a
complexidade do conflito, mas apenas com litígios determinados. Para utilizar
os conceitos de Boaventura de Sousa Santos[17],
existe um conflito real e um conflito processado (que chamamos
aqui de litígio).
Assim, para ingressar em juízo, Capitu precisaria definir o
litígio que ela desejaria que o juiz resolvesse, solicitando que fosse feita
uma determinada divisão de bens, que fosse concedida uma pensão alimentícia,
que Bentinho fosse proibido de freqüentar certos lugares, ou qualquer outra
coisa que desejasse. E ao juiz caberia simplesmente analisar se o pedido feito
por Capitu teria ou não base no direito positivo e, com base nesse critério,
deferi-lo ou não. Dessa forma, o pedido do autor define o litígio e este determina
o limite da autoridade judicial sobre o caso.
Porém, também é possível falar de litígios dentro de
conflitos em que um terceiro não seja chamado a decidir um problema. Se, por
exemplo, Capitu e Bentinho selecionarem, dentro de sua relação conflituosa,
determinados pontos que elas desejam ver resolvidos normativamente, eles tanto
podem negociar estes pontos específicos, em uma composição direta, como podem
chamar um terceiro para auxiliá-los a chegar a uma acordo, e não para que ele
decida o litígio[18].
De toda forma, é preciso não confundir o conflito com o
litígio, pois, embora todo litígio esteja ligado a um conflito, ele não
representa toda complexidade do conflito que lhe é
subjacente, mas uma determinada faceta sua, a qual pode ser decidida por meio
do estabelecimento de uma norma, seja esta regra imposta por um terceiro (juiz
ou árbitro), seja ela fruto de um acordo direto ou assistido.
III - Mapeando as estratégias autocompositivas
A - Autocomposição direta
Chamamos de autocomposição
direta o modo de enfrentamento de conflitos no qual as partes envolvidas
buscam o consenso sem que haja a intervenção de um terceiro imparcial. Quando
há intervenção de um terceiro imparcial (ou seja, de alguém que não está
vinculado à defesa dos interesses de nenhuma das partes), passamos ao campo da autocomposição
mediada, que será trabalhada no próximo ponto.
Nos casos de autocomposição direta
em que não há uma dimensão emocional envolvida (como uma divergência sobre os
juros incidentes sobre um empréstimo bancário), trabalha-se tipicamente com o
agir indiferente e, portanto, o enfrentamento do conflito dá-se por meio de uma
negociação de interesses, em que cada parte somente cede em suas pretensões
caso julgue que o consenso gerado lhe seria mais vantajoso. Nessas hipóteses, falamos
normalmente de negociação ou transação, denominações que acentuam
o fato de tratar-se de um jogo estratégico no qual o consenso é atingido ao
custo de concessões mútuas.
Na negociação, é possível a
intervenção de um terceiro (o negociador), mas este não é imparcial,
pois a sua função será defender os interesses de alguma (ou algumas) das partes
envolvidas. Esse é um papel constantemente desempenhado por advogados, que
muitas vezes representam (ou ao menos assessoram) seus clientes em negociações
que visam a resolver conflitos.
Porém, também ocorrem
autocomposições diretas em casos que envolvem uma dimensão emocional
acentuada, nos quais há uma tendência para que ganhe relevância um agir
comprometido. Capitu e Bentinho, por exemplo, podem tentar chegar a um consenso
sobre qual será a versão oficial dos motivos de sua separação, sendo que ambos
estejam sinceramente buscando a solução mais justa. Tratar essa hipótese como
uma negociação ou uma transação não nos parece adequado, pois esses termos
remetem a um agir estratégico-indiferente que não é o predominante no caso.
Para tratar desses casos, falta uma terminologia definida, motivo pelo qual
sugiro que tratemos hipóteses desse tipo como espécies de autocomposição
direta comprometida e que passemos a enquadrar a negociação como uma forma
de autocomposição direta estratégica.
Possivelmente não
fazem parte do senso comum conceitos específicos para tratar da autocomposição
comprometida porque os casos de comprometimento positivo tendem a gerar um
consenso sem a necessidade de intervenção de terceiros e os casos de
comprometimento negativo tendem a gerar conflitos cujo enfrentamento adequado
normalmente exige a intervenção de terceiros, escapando, assim, do âmbito da
autocomposição direta. De toda forma, essa distinção parece útil para definir
mais precisamente o campo da negociação (em que ganhariam relevância as
abordagens meramente estratégicas, especialmente a teoria dos jogos) e para
distinguir os vários modos de autocomposição mediada.
B - Autotutela
Antes de passar
para a análise da autocomposição mediada, cabe tecer algumas considerações
sobre uma outra forma de enfrentamento de conflitos, que ocorre quando uma das
partes, em vez de buscar uma composição do conflito por meio do diálogo,
utilizam-se de sua própria força para fazerem valer os interesses que ela
considera legítimos. Nesses casos, como não há a busca de uma composição das
partes conflitantes, mas uma ação unilateral em que uma das partes tenta
garantir o que entende como o seu direito, falamos de autotutela e não
de autocomposição.
Este seria o caso,
por exemplo, se Capitu considerasse que seu gosto especial pela música lhe dava
direito a ficar os discos que foram do casal e, prevendo que Bentinho não
aceitaria essa proposta, em vez de negociar com o ex-companheiro, ela
simplesmente se apossasse de todos os discos. A autotutela, portanto, não é uma
conduta que privilegia o diálogo, mas trata-se de uma imposição unilateral dos
interesses de um sobre os do outro. Porém, para que se caracterize propriamente
como autotutela, é preciso que a parte entenda que está atuando na defesa de um
direito, e não simplesmente na defesa de um interesse pessoal.
Esse comportamento
é visto com muitas reservas, havendo inclusive um crime, chamado de exercício
arbitrário das próprias razões, que submete a pena de prisão quem faz justiça
pelas próprias mãos. Porém, há casos em que é reconhecido o direito à
autotutela, como ocorre na legítima defesa, que é a permissão de que a uma
pessoa ameaçada de dano iminente defenda seus interesses legalmente protegidos
(ou seja, seus direitos) com os meios disponíveis. De toda forma, ainda que a
nossa sociedade acolha a autotutela em certos casos, ela é considerada uma
medida excepcional, que somente se justifica no caso de ser a única saída
possível para garantir um interesse legítimo.
C - Autocomposição assistida
A autocomposição
assistida é aquela em que há a intervenção de um terceiro imparcial, ou seja,
de uma pessoa que não está envolvida diretamente no conflito nem representa os
interesses de alguma das partes envolvidas. Esse terceiro imparcial pode ser
conhecido das partes, pode inclusive ter uma relação afetiva com elas (uma mãe,
por exemplo, pode mediar um conflito entre os filhos), mas seria inadequado que
um processo de autocomposição assistida fosse orientado por um terceiro com
interesse pessoal em uma das alternativas possíveis, pois, em vez de auxiliar
as partes a chegarem ao consenso ou a uma situação de equilíbrio, o terceiro
poderia direcionar o acordo tendo em vista seus próprios interesses.
É claro que a
neutralidade absoluta não existe e que o terceiro imparcial tem valores
pessoais que certamente influirão na sua atividade, por mais que ele se esforce
para agir de modo neutro. Porém, quando ele passa a defender os seus próprios
interesses, ainda que de forma velada ou até mesmo inconsciente, ele deixa de
ser um terceiro e passa a ser uma parte do próprio conflito, o que faz com que
o processo tenha apenas a aparência de autocomposição assistida. Uma mãe que, a
pretexto de mediar um conflito entre seus filhos, pressiona um deles para
aceitar uma proposta feita pelo outro, pode até propiciar a realização de um
acordo, mas não terá atuado como assistente[19]: ela se transformaria em parte, eventualmente em
negociadora, mas não poderia ser qualificada como um terceiro imparcial.
Ressalte-se que a
imparcialidade do terceiro não é uma exigência lógica, mas ética, somente
fazendo sentido dentro de uma perspectiva que valorize a subjetividade das
pessoas e que considera legítimo apenas o acordo que é realizado por uma
vontade livremente expressada, o que implica a ausência de pressões externas,
como ameaças, subornos ou pressões. Nessa medida, exige-se do assistente que
sirva como um facilitador do acordo ou do equilíbrio e não como um defensor de
determinado interesse, ainda que seja dos valores que ele considera justos.
Esse respeito pela liberdade das partes e por sua autonomia está no centro das
preocupações com a autocomposição assistida, pois a linha que separa a
parcialidade da imparcialidade pode ser muito tênue, especialmente nos casos em
que o terceiro adota uma postura mais ativa.
Por fim, cabe
ressaltar que, em alguns casos, é obrigatório que as partes submetam-se a um
processo autocompositivo assistido, como acontece nos juizados especiais
cíveis. Nesses órgãos do Poder Judiciário, o processo é dividido em duas
partes: uma etapa necessária de conciliação e uma etapa jurisdicional, que
ocorre apenas quando a autocomposição é infrutífera. Existe, assim, uma
audiência de conciliação, na qual um conciliador (função gratuita que pode ser
exercida por qualquer pessoa que tenha uma qualificação mínima) tenta conduzir
as partes à realização de um acordo, e somente quando as tentativas de
conciliação são frustradas, o processo vai a um juiz, para que ele tome uma
decisão a ser imposta às partes. De toda forma, embora seja obrigatória a
participação no processo, as partes não podem ser obrigadas a chegarem a um
acordo e o conciliador não pode impor-lhes qualquer decisão, motivo pelo qual
esse método continua sendo autocompositivo.
IV - Entre mediação e conciliação
Conciliação e
mediação são dois termos que sempre são utilizados nas teorias que tratam dos
métodos de enfrentamento de conflitos que aqui chamamos de autocomposição
mediada. A palavra mediação acentua o fato de que a autocomposição não é
direta, mas que existe um terceiro que fica “no meio” das partes conflitantes e
que atua de forma imparcial. A palavra conciliação acentua o objetivo
típico desse terceiro, que busca promover o diálogo e o consenso. Assim, para o
senso comum, não pareceria estranha a idéia de que o mediador tem como objetivo
promover a conciliação, havendo mesmo muitos autores tanto brasileiros como
estrangeiros que tratam esses termos como sinônimos[20]. Porém, na tentativa de acentuar as diferenças existentes
entre as várias possibilidades de autocomposição mediada, são vários os autores
que buscam diferenciar conciliação de mediação, ligando significados diversos a
esses termos.[21]
Nessa busca, dois
são os grandes critérios em torno dos quais giram as tentativas de
classificação: o modo de atuação do terceiro imparcial e o tipo de conflito
envolvido. Assim, os autores que se concentram no primeiro critério tendem a
considerar que o mediador atua simplesmente como facilitador nas negociações,
enquanto o conciliador adota uma postura mais ativa, podendo inclusive propor
alternativas[22] ou exatamente o contrário, afirmando que o papel do
conciliador limita-se a induzir as partes a “envolver-se ativamente na
resolução do problema”[23]. Já os teóricos que se concentram no segundo critério tendem
a afirmar que a mediação está ligada a conflitos mais amplos (que chamamos
neste trabalho de multidimensionais ou de múltiplos vínculos), enquanto a
conciliação está ligada a conflitos mais restritos (que chamamos de
unidimensionais ou de vínculo único).
Embora essas
distinções sejam aparentemente coerentes entre si, não é possível
harmonizá-las, pois um terceiro que atuasse como facilitador em conflitos
restritos seria considerado por uns como mediador e por outros como
conciliador. Essa incompatibilidade é fruto da opção dicotômica, em que se
oferecem opções binárias (ou se é um conciliador ou se é um mediador) com base
em critérios diferentes.
A - A mediação centrada no acordo[24]
Para tentar superar
essa dificuldade, o norte-americano Leonard Riskin propôs a substituição do
modelo binário por um modelo graduado e tentou harmonizar os dois critérios, na
tentativa de desenvolver uma teoria que englobasse todos os aspectos do
problema[25]. Todavia, com esse passo, Riskin não poderia manter a
distinção entre mediação e conciliação, pois precisava tratar todas as
estratégias possíveis como espécies de um mesmo gênero, tendo ele optado por
manter a mediação como gênero e descrever as suas possibilidades de variação.
Para englobar as
duas variáveis em um mesmo modelo, Riskin propôs que se construísse um gráfico
cartesiano em que um eixo representasse a amplitude dos problemas a serem
resolvidos e o outro o nível de intervenção do mediador. A amplitude do problema,
que poderíamos designar como amplitude do litígio, varia de questões pontuais
(ex: definição de uma indenização), passa por questões mais complexas (ex:
interesses comerciais e profissionais dos envolvidos), até atingir as
implicações sociais do conflito (ex: interesses comunitários envolvidos). Já o
papel do mediador varia de um mero facilitador (que não poderia sequer sugerir
propostas de acordo), passaria por uma etapa intermediária (em que ele pode até
sugerir propostas, mas não pode oferecer sua visão pessoal), até chegar ao
ponto oposto, do mediador avaliativo, que não apenas teria a possibilidade de
dar a sua opinião, mas poderia até chegar ao ponto de pressionar as partes a
celebrar um acordo, se tivesse meios de pressão para tanto[26]. Entendendo que os eixos se cruzam nos pontos médios entre
essas características, o gráfico ficaria dividido em quatro campos, que Riskin
identifica como representando as quatro linhas básicas de orientação do
mediador:
1.
facilitador-restrito, que apenas orienta as partes em questões pontuais, (ex:
um conciliador que, mediante perguntas, ajuda as partes envolvidas em uma
batida de trânsito a compreenderem adequadamente os argumentos colocados e suas
implicações),
2.
facilitador-amplo, que orienta as partes em questões mais profundas, mas
deve abster-se de qualquer manifestação que implique uma avaliação do problema
(ex: um mediador que tenta ajudar Capitu e Bentinho a compreenderem melhor os
seus próprios interesses e as implicações futuras da aceitação das propostas que
um dirige ao outro),
3.
avaliador-restrito, que deve estimular as partes a tomar decisões em questões
de baixa complexidade (ex: um conciliador de um juizado especial que diz a um
dos envolvidos em uma batida de trânsito que os juízes normalmente decidem casos
daquele tipo do modo como a outra parte sugeriu),
4.
avaliador-amplo, que poderia chegar ao ponto de pressionar as partes a
fecharem um acordo (ex: um juiz que diz a Bentinho que a proposta feita por
Capitu é tão boa que dificilmente se encontraria uma saída mais justa).
Com esse modelo,
Riskin oferece uma saída abrangente, pois constrói um sistema em que relaciona
as variáveis que outras propostas tendem a tratar de forma isolada. Porém,
creio essa saída não equaciona devidamente o problema, pois termina-se por
substituir os problemas inerentes a dicotomias rígidas pelos problemas de uma
falsa gradação. O pressuposto do modelo de Riskin é o de que é possível
diferenciar os conflitos a partir de gradações, o que implicaria que a
diferença entre eles não reside em critérios qualitativos, mas na quantidade de
determinados elementos, quais sejam, a amplitude do problema e a postura
avaliativa do mediador. Conseqüentemente, se a diferença é meramente
quantitativa, o modelo ergue-se sobre o pressuposto de que os conflitos têm um
substrato comum e que o objetivo do mediador é sempre o mesmo, mudando apenas a
complexidade do primeiro e a interventividade do segundo.
Esse fato indica
que Riskin compartilha do que Warat chama de uma orientação acordista da
mediação, que entende o conflito como um problema resolvido pelo acordo e que
considera, portanto, que a função única da mediação é construir uma solução
consensual para por fim ao conflito[27]. Na base dessa concepção, identifica-se a teoria
individualista clássica, que pensa a sociedade como um conjunto de indivíduos
que age estrategicamente na busca de satisfazer os seus interesses individuais,
motivo pelo qual seria possível diferenciar os conflitos apenas pela amplitude
da divergência a ser resolvida. Dentro dessa concepção, para a qual a mediação
oferece a oportunidade de proporcionar uma satisfação conjunta a todos os
disputantes de um conflito, Riskin desenvolveu um modelo que supera alguns
limites das teorias anteriores, mas incide nos próprios limites da visão acordista.
E o principal
desses limites é uma indiferenciação ente conflitos ligados a um agir meramente
estratégico e conflitos ligados a um agir comprometido, elementos cuja
diferença é qualitativa e não quantitativa, o que inviabiliza a sua inclusão em
gráficos baseados na variação constante de um elemento comum subjacente a todos
os objetos abrangidos pelo sistema. Nessa medida, por mais que devamos
reconhecer a engenhosidade do modelo, julgo que o fato de Riskin não reconhecer
uma diferença qualitativa entre os conflitos faz com que ele não possibilite
enfrentar adequadamente a complexidade da mediação.
Por tudo isso,
parece-me mais adequado reconhecer que o modelo de Riskin explica bem os
conflitos que têm dimensão emocional mais restrita, que envolvem uma
contraposição de adversários que agem estrategicamente e que exigem a
intervenção do terceiro para catalisar um acordo, pois a sua função é a
resolução do litígio e não na transformação do conflito. Nessa medida, a teoria
de Riskin restringir-se-ia basicamente ao que Warat chama de conciliação,
conceito que ele diferencia do de mediação, em uma tentativa de
construir uma teoria da autocomposição que transcenda os limites do modelo
acordista.
B - A mediação centrada no conflito[28]
1. A orientação transformadora
Para Warat, a
diferença primordial entre conciliação e mediação está no tipo de conflito a
ser enfrentado, sendo que essa distinção tem reflexos diretos no papel a ser
desempenhado pelos mediadores e conciliadores. Outros autores essas duas
categorias como tipos distintos de mediação e, como fazem Bush, Folger, dividem
a mediação em transformadora (transformative mediation) e resolutiva
de problemas (problem solving mediation)[29]. Porém, prefiro a distinção proposta por Warat, tanto por
considerá-la mais elegante (as escolha das terminologias é sempre influenciada
por nosso senso estético) como por tratar devidamente um conceito já está
consolidado na experiência jurídica brasileira: a conciliação. Como a
conciliação é ligada normalmente ao trabalho dos juizados especiais e dos
juízes, cuja função primordial (devida ou indevidamente) é estimular o acordo,
creio que essa distinção conceitual é a mais compatível com o uso normal da
palavra.
De acordo com
Warat, a mediação relaciona-se a conflitos com uma forte dimensão emocional e
que envolvem um agir eticamente comprometido, enquanto a conciliação aborda
conflitos com dimensão afetiva anêmica ou inexistente e envolve um agir
estratégico-indiferente. Com isso, a função da mediação é de intervir
basicamente no aspecto emocional, buscando transformar uma relação conflituosa
em uma relação saudável, auxiliando as partes a compreender o conflito de forma
mais aprofundada (o que implica compreender os seus próprios desejos e
interesses), para que, com isso seja possível converter um comprometimento
negativo em um comprometimento positivo ou aumentar o nível de cooperação entre
as partes.
Nessa medida, o
objetivo da mediação não seria o acordo, mas a transformação do conflito. Essa
visão parte do pressuposto de que o conflito não é fruto direto de situações
objetivas, mas é fruto do modo como as pessoas interpretam uma situação e
reagem a ela (uma mesma situação pode gerar conflito para certas pessoas e não
para outras), de modo que é possível alterar o próprio conflito a partir da
modificação do modo como as partes envolvidas o percebem. Não se trataria,
pois, de uma simples negociação de interesses, mas de uma compreensão dos
interesses e sentimentos, com a finalidade de transformar as relações que
atingiram um grau de desequilíbrio tal que a autocomposição direta já não era
mais um instrumento eficaz. Nas palavras do próprio Warat, a mediação é um
trabalho de reconstrução simbólica do conflito, que é capaz de promover uma
transformação no conflito por meio de uma (re)interpretação que, conferindo
novas significações à relação conflituosa, recrie a possibilidade de uma
convivência harmônica das diferenças. [30]
Essa idéia também
está presente na concepção de Winslade e Monk, que, extrapolando elementos
psicológicos da terapia narrativa (narrative therapy), desenvolveram o
que chamaram de mediação narrativa (narrative mediation), uma perspectiva que acentua a
dimensão lingüística dos conflitos e nega a pressuposição tradicional de que “what people want (which
gets them into conflict) stems from the expression of their inner needs or
interests. Rather it starts from the idea that people construct conflict from
narrative descriptions of events”[31]. Por isso, as vertentes ligadas
à orientação transformadora trabalham com as dimensões simbólicas do conflito,
mais que com harmonização dos desejos derivados dessa percepção simbólica da
experiência pessoal.
Nesse sentido, a
função do mediador é estimular as partes a reconstruir laços emocionais
rompidos (ou construir novos enlaces) e, com isso, fazer com que elas possam
construir uma relação de convivência harmônica. Para usar a linguagem poética
que marca as concepções[32] de Warat, a mediação tem como objetivo reintroduzir o amor
no conflito, pois o mediador precisa contribuir para que as partes erotizem o
conflito, inscrevendo o amor entre as pulsões destrutivas e, com isso,
recolocando o conflito no terreno das pulsões de vida[33].
Essa afirmação
evidencia um outro pressuposto fundamental da visão dominante nas perspectivas
centradas no conflito, que é a idéia de que as tensões não são um problema a
ser erradicado, mas componentes intrínsecos das relações pessoas. As pessoas
são diferentes (têm diferentes desejos, interesses, sentimentos, etc.) e as
relações humanas são o ambiente em que essas diferenças se produzem como
realizações da autonomia das pessoas, gerando uma imensa riqueza em sua
diversidade, embora gerando também tensões no entrechoque dessa mesma
diversidade. Por conta disso, Warat considera o conflito como uma confrontação
construtiva, pois ele entende a vida como um devir conflitivo que tem de ser
adequadamente gerenciado[34].
Nesse contexto, o
conflito mostra-se como “uma das principais forças positivas na construção das
relações sociais e na realização da autonomia individual”, pois “à indiferença
de força puramente negativa, autodestrutiva da indiferença, o conflito brinda
com um incentivo para a interação e termina erigindo-se numa possibilidade para
criar, com o outro [e não contra o outro], a diferença”[35]. Por isso, é normalmente um equívoco falar em resolução de
conflitos emocionais, pois o que se pode fazer nesses casos é transformar o
conflito, harmonizando e não anulando as tensões, motivo pelo qual Warat chama
sua própria concepção de orientação transformadora, contrapondo-a à orientação
acordista[36].
2. Mediação e conflito
Dado esse modo
produtivo de encarar o conflito, não teria compreendido adequadamente a sua
função um mediador que se propusesse a anular as tensões de forma absoluta e
definitiva. Esse pseudo-mediador, normalmente de boa vontade, não só estaria em
busca de um objetivo inatingível, mas tenderia a obliterar a própria riqueza da
relação em que viesse a intervir. O mediador deve ter em mente que toda relação
humana é plena de tensões e que nem o conflito pode ser definitivamente
resolvido, nem isso é desejável, pois a conflituosidade (mantida, é claro,
dentro de certos limites), é requisito e não empecilho a uma convivência
saudável. Por isso, a função da mediação é transformar o modo como as partes
percebem os seus conflitos, de forma a criar uma situação em que as partes
sejam capazes de lidar autonomamente com a conflituosidade inerente a sua
relação, no presente e no futuro.
A mediação,
portanto, não pode ser reduzida à busca de um acordo. O acordo é uma norma a ser
cumprida, ainda que ela provenha de uma decisão consensual das partes
conflitantes — ele põe fim a um litígio, mas resolver o litígio não implica
transformar o conflito. A mediação busca tornar o acordo desnecessário, fazendo
com que o conflito não gere incompatibilidades ou tentando sanar as
incompatibilidades anteriormente estabelecidas. Trata-se, pois, de ajudar as
partes a desenvolverem formas autônomas para lidar com as tensões inerentes ao
seu relacionamento, e não de buscar acordos que dêem fim a uma controvérsia
pontual.
Isso aponta outro
pressuposto fundamental, que é o fato de que as controvérsias que afloram em
uma relação conflituosa normalmente têm raízes bem mais profundas que as que
normalmente são percebidas à primeira vista, nem mesmo pelas partes. Como
afirma Warat, em todo sentido enunciado existe um dito e um não-dito e
conheceremos muito pouco se permanecermos simplesmente no nível do sentido
manifestado, pois, “as partes, mais do que freqüentemente se imagina, não
conhecem as suas próprias intenções e perdem-se nas formas de seus próprios
enunciados; são essas as armadilhas do inconsciente que o mediador deve
ajudá-las a trabalhar”[37].
Esse fato aponta para uma ligação muito forte do mediador
com a psicologia, pois ele precisa compreender a fundo o conflito e os modos
como as pessoas lidam com eles, para possibilitar que atue de maneira eficaz na
sua transformação. Como os conflitos com forte dimensão emocional normalmente
resultam das tensões vividas em uma relação que se prolonga no tempo e que tem
múltiplas dimensões, buscar resolver o efeito sem atacar a causa real do
desequilíbrio não seria uma saída razoável.
E o único modo de atacar as causas do conflito é não
concentrar-se no próprio conflito (que é apenas efeito), mas no sentimento das
pessoas, ajudando-as a olhar para si mesmas e a “sentir seus sentimentos”[38]. Por isso, o papel do mediador não é o de um negociador
nem o de um conciliador (ambos estrategistas em busca do acordo), mas o de um
“psicoterapeuta de vínculos conflitivos”[39], que busca auxiliar as partes a inscrever o amor no meio
conflito.
3. Mediação e conciliação
A partir desse
fato, torna-se claro que, no centro da distinção entre conciliação e mediação,
está a postura do terceiro imparcial frente à autonomia das partes. O
conciliador, tal como o negociador, ocupa tipicamente um lugar de poder, pois,
embora ele não tenha autoridade para impor uma decisão às partes[40], as técnicas de que o conciliador se utiliza não são
voltadas para fazer com que as partes reconheçam e realizem seus próprios
desejos, mas têm como objetivo conduzir as partes a realizarem os objetivos do
próprio conciliador, cuja função é a de propiciar um acordo, ainda que contra a
vontade das partes. Embora isso possa soar paradoxal, muitas vezes o conciliador
está interessado apenas em que as partes realizem um acordo, dado que ele se
percebe como um sujeito cujo objetivo é fazer com que se resolva o litígio por
meio de uma promessa mutuamente consentida.
Essa é uma situação
especialmente comum nas conciliações institucionais, tal como as que ocorrem
dentro do Poder Judiciário, tanto nas sessões de conciliação dos juizados
especiais quanto nas audiências de conciliação e julgamento presididas pelos
juízes. Nesses casos, o acordo não representa uma forma de valorizar a
autonomia da parte, mas representa apenas uma estratégia para evitar que o juiz
tenha que julgar o caso, acelerando o andamento do processo judicial. Inserida
em um sistema de poder voltado para que autoridade do juiz substitua[41] a autonomia das partes, a conciliação não poderia deixar
de estar vinculada ao poder e não à autonomia.
O conciliador
judicial cumpre seu papel institucional e burocrático quando o acordo é
assinado e, por isso, muitas vezes utiliza todos os meios de pressão
disponíveis para fazer com que as partes aceitem algum acordo. E mais grave
ainda é a distorção do papel dos juízes que, para “agilizar” o seu próprio
serviço, pressionam as partes, afirmando expressamente (ou quase expressamente)
a uma das partes que ela deveria aceitar uma certa proposta, pois o acordo lhe
seria mais vantajoso que a decisão que ele tomaria se tivesse que resolver o
litígio.
O mais trágico é
que essa supressão da autonomia é revestida por um discurso de garantia da
própria liberdade das partes. A legitimidade do acordo é baseada na idéia de
que ele é fruto de uma decisão das pessoas envolvidas, mas, por um lado, muitos
acordos resultam da pressão do meio judicial (e da ignorância das partes, que
potencializa essa pressão) ou de negociações em que afloram apenas os aspectos
mais superficiais do conflito, pois falta ao conciliador a formação (e muitas
vezes o interesse) de explorar todas as dimensões do conflito. Ademais, aliar
essa exploração das raízes do conflito à conscientização das partes sobre os limites
da sua liberdade[42], possivelmente tornaria mais difícil o “acordo”, cuja
obtenção é o objetivo do conciliador, mesmo que não seja o objetivo das partes
(que não querem o acordo, mas a realização de seus próprios sentimentos de
justiça).
Além disso, a cultura
individualista propaga um ideal de autodeterminação bastante peculiar, que não
deve ser confundido com o que chamamos aqui de autonomia, pois esse ideal tem a
ver com o exercício dos interesses de cada pessoa, mesmo que essa pessoa não
conheça adequadamente seus próprios sentimentos nem seja capaz de avaliar
devidamente as conseqüências de suas ações. Nesse modelo, o exercício de um
desejo imaturo e egoísta, carregado de frustrações e carências, fundado em um
sentimento superficial e possivelmente passageiro, tende a ser entendido como
uma legítima manifestação de autodeterminação da pessoa[43].
Seguindo a
orientação acordista, buscar-se-ia resolver o litígio por meio de um acordo, em
vez de oferecer à pessoa que vive um conflito interior a possibilidade de
resolver suas próprias tensões internas, para que ela possa vir a transformar
adequadamente seus conflitos intersubjetivos. Por tudo isso, mesmo que o
discurso do conciliador seja estabelecido em função do acordo, o lugar do
conciliador é o lugar do poder que se impõe (pois mesmo acordos podem ser
impostos) e não o lugar da autonomia que se constrói.
Ademais, mesmo
quando atua apenas como um facilitador, o discurso do conciliador é estratégico
e não comprometido, servindo a uma tentativa de limitar a autonomia das pessoas
por meio de uma promessa formal. Se a promessa pode ser entendida, por um lado,
como fruto da autonomia, ela estabelece uma prisão no momento em que é feita. A
promessa é uma norma a ser cumprida e, embora a resolução normativa de conflitos
seja uma estratégia de limitação da liberdade adequada para lidar com conflitos
de pouca densidade emocional, é impossível enquadrar em normas a complexidade
de uma relação multidimensional.
Possivelmente todos
já tentamos estabelecer regras para regular conflitos de fundo emocional em
relações de múltiplo vínculo, e todos já nos demos conta de que a manutenção
pura e simples dessas regras, longe de harmonizar a relação, termina por gerar
novos conflitos e solapar a poesia. A emoção não exige o mero cumprimento
estratégico da regra, mas a sinceridade em um agir comprometido com os
sentimentos do outro — e as normas são inúteis para regular os sentimentos[44].
4. Limites da mediação
A esta altura, já
deve ter ficado claro que a mediação (tal como definida por Warat, que podemos
identificar com a mediação transformadora de Bush e Folger e, em linhas gerais,
com a perspectiva narrativa de Winslade e Monk), não é aplicável a imensa gama
de conflitos — toda vez que o conflito não envolver uma relação afetiva entre
as partes, as tentativas de autocomposição mediada serão descabidas, pois a
mediação é um trabalho sobre afetos em conflito, não um acordo exclusivamente
patrimonial e sem marcas afetivas”[45]. Como o mediador atua justamente no restabelecimento dos
laços emocionais desestabilizados pelo acirramento de um conflito que poderia
ter sido mantido em um nível razoável, o sucesso da mediação pressupõe que o
conflito tenha uma dimensão afetiva.
Isso, porém, não
quer dizer que a mediação apenas se aplica a conflitos familiares, pois há uma
dimensão emocional forte em quase toda relação de múltiplo vínculo, pois as
pessoas são ligadas, entre si e com a comunidade circundante, por vários
interesses e valores inter-relacionados. Tal é o caso não apenas nas relações familiares,
mas também nas relações de vizinhança, relações de trabalho, relações de
amizade ou companheirismo. De que adianta cobrar uma dívida conflituosa e
impossibilitar a relação com um colega de turma com o qual se precisa conviver
diariamente por mais quatro anos? Além disso, devem ser levadas em consideração
as implicações desses fatos nas relações com as outras pessoas interessadas,
pois o modo como tratamos um colega influi no modo como toda a comunidade nos
trata[46].
Para resolver
situações desse tipo, a aplicação de estratégias puramente normativas (seja a
aplicação de regras gerais preestabelecidas ou a criação consensual de novas
regras) é muito pouco útil, pois elas provavelmente acirrariam o conflito em
vez de resolvê-lo. Para dar conta dessa complexidade de vínculos, a mediação
mostra-se o instrumento mais adequado, pois tem a flexibilidade necessária para
avaliar as várias implicações do conflito e não impõe às partes nenhuma espécie
de obrigação — ao menos de uma obrigação consubstanciada em uma regra
formalmente reconhecida, como uma sentença, um laudo arbitral ou um acordo
feito frente a um conciliador.
Contudo, essa
flexibilidade pressupõe a existência de uma dimensão afetiva no conflito e um
interesse das partes em reconstruir a sua relação em novas bases. Com isso,
embora seus limites sejam razoavelmente estreitos, a mediação é capaz de tratar
de problemas inacessíveis à conciliação e à arbitragem, pois pode e
efetivamente trata de direitos indisponíveis e, em vários casos, é uma
alternativa mais adequada que a jurisdição. Todavia, é preciso admitir a sua
completa inutilidade nas relações de vínculo único ligadas a um agir
estrategicamente indiferente, pois, quando há apenas uma oposição de interesses
sem dimensão emocional relevante, a intervenção de um conciliador ou de um juiz
tende a ser mais adequada que a de um mediador.
V - Mapeando as estratégias heterocompositivas
A heterocomposição
é um modo de composição de conflitos no qual existe a figura de um terceiro
imparcial que tem autoridade para impor uma solução para as partes em conflitos. Assim ,
enquanto na autocomposição mediada o terceiro limita-se a orientar as partes e
não tem o poder de suprimir a autonomia dos envolvidos no conflito, na
heterocomposição existe um terceiro que toma decisões que podem ser impostas às
partes.
Se, por exemplo,
Capitu e Bentinho não chegassem a um acordo sobre a divisão dos bens que
pertenciam a ambos, eles poderiam convidar um amigo comum e solicitar a ele que
fizesse a divisão, comprometendo-se a aceitar as escolhas feitas pelo amigo.
Como o amigo não foi chamado simplesmente para opinar, nem apenas para mediar,
mas para tomar uma decisão imponível às partes, não se trata de autocomposição
mediada, mas de heterocomposição.
A - Arbitragem
No exemplo acima
descrito, o amigo convidado a tomar uma decisão atuaria como árbitro, ou
seja, como terceiro imparcial cuja autoridade para decidir o litígio deriva da
própria escolha das partes. Não caberia falar, portanto, de uma arbitragem
imposta, pois a escolha da via arbitral sempre precisa ser fruto de uma
decisão autônoma das partes envolvidas no conflito.
A autoridade do
árbitro, portanto, não deriva de uma autoridade superior às partes, mas da
própria autonomia das pessoas envolvidas no conflito: se elas poderiam resolver
o litígio por meio de uma autocomposição, também podem elas escolher uma
autoridade para dar fim ao litígio. Por não depender de uma autoridade superior
às partes, a arbitragem é a única forma de heterocomposição existente no
direito internacional, pois não há nenhuma autoridade internacional que seja
hierarquicamente superior à dos Estados. Portanto, se o Brasil tiver um
conflito com a Argentina e não for possível chegar a um composição consensual,
não há como recorrer a uma autoridade superior, restando aos envolvidos apenas
a autotutela[47] ou a arbitragem.
Os Estados
nacionais em conflito poderiam, portanto, nomear um outro Estado como árbitro,
atribuindo a ele a autoridade para resolver a questão, de forma que a solução
que ele der ao caso, mediante um laudo arbitral, obrigará às partes
conflitantes. Percebe-se, pois, que a arbitragem é heterocomposição, pois, se há autonomia no tocante à escolha dos
árbitros, a decisão do árbitro é válida independentemente da vontade das partes
— e seria inútil se assim não o fosse. Portanto, embora a via arbitral seja
escolhida autonomamente as suas decisões são impostas de forma heterônoma.
Mesmo os chamados tribunais internacionais, como o de Haia
(ou da Haia), não passa de uma corte permanente de arbitragem. Se algum Estado
resolver demandar o Brasil frente ao Tribunal de Haia, a primeira coisa que
essa Corte fará será perguntar ao Brasil se ele confere ao Tribunal autoridade
para decidir o caso. Se o Brasil disser que não (tecnicamente diríamos que o
Brasil recusaria a jurisdição da Corte), o processo será simplesmente
encerrado. Se o Brasil disser que sim, então ele conferirá autoridade à Corte
para agir como tribunal arbitral.
Contudo, a opção
pela arbitragem pode ser feita antes mesmo do afloramento do conflito. No campo
internacional, por exemplo, há vários países que firmaram um tratado
comprometendo-se a aceitar a autoridade do Tribunal de Haia, sempre que fossem
demandados para resolver litígios internacionais. No direito interno
brasileiro, observa-se atualmente um crescimento constante no número de
contratos que possuem uma cláusula arbitral, ou seja, uma disposição que
determina que os conflitos resultantes do contrato serão resolvidos por meio de
arbitragem e não pelo recurso a um juiz do Estado. Com isso, a opção pela via
arbitral preexiste ao conflito, sendo que esse tipo de escolha vincula as
partes à arbitragem.
Além disso, a
pessoa do árbitro nem sempre precisa ser escolhida de comum acordo pelas
partes, pois a maioria das cláusulas arbitrais atribui a autoridade para
resolver o conflito não a um indivíduo, mas a uma determinada Câmara de
Arbitragem. Cada Câmara de Arbitragem tem suas regras próprias e um corpo
específico de árbitros, de tal modo que, a partir da assinatura do contrato, as
partes ficam vinculadas às regras da respectiva Câmara de Arbitragem, inclusive
as que dispõem sobre a escolha dos árbitros.
Também é possível
aos cidadãos brasileiros optar pela arbitragem após o surgimento do conflito, o
que é feito por meio de um contrato por meio do qual se constitui uma pessoa
como árbitro para dar fim a um certo litígio. Por meio desse compromisso, além
de nomear o árbitro, deve-se estabelecer os limites do seu poder e definir os
critérios que ele deverá utilizar, ou determinar que serão seguidas as regras
de uma Câmara Arbitral determinada.
Assim, a arbitragem
posterior ao conflito somente é viável quando as partes conflitantes são
capazes de eleger uma pessoa ou instituição que ambas considerem idônea — o que
nem sempre é fácil, devido às divergências valorativas que pode haver entre as
pessoas em conflito. Por
conta dessa dificuldade, a arbitragem mostra-se uma saída muito conveniente
para o tratamento de questões fundamentalmente técnicas/científicas, pois a
escolha do árbitro dependerá de qualificações profissionais, mais que de seus
valores ideológicos.
Todavia, em casos
muito ligados a juízos de valor, a arbitragem somente se mostraria razoável
quando as partes comungassem a mesma ideologia: que árbitro seria possível para
resolver uma questão de fundo ético, como é o normal das questões familiares e
em outros conflitos multidimensionais? Em casos desse tipo, quando há um
conflito de valores, a opção pela arbitragem não parece ser a mais indicada,
pois, mesmo que a lei permita a arbitragem para resolver litígios de natureza
patrimonial, o conflito subjacente pode transcender em muito a questão
patrimonial que aflorou no litígio.
Além disso, o
reconhecimento dos limites da arbitragem fez com que a lei brasileira limitasse
a sua aplicação aos direitos disponíveis, especialmente os patrimoniais,
vedando a sua utilização em conflitos que envolvem direitos indisponíveis, como
a vida, a liberdade, vários direitos ligados à família, entre outros. Nesses
casos, como o direito é considerado indisponível (a pessoa não pode abdicar
dele nem negociá-lo, ainda que o deseje), o Estado reserva a si a possibilidade
de resolver os conflitos a eles relativos, por via jurisdicional. Assim, a
arbitragem fica praticamente restrita às questões patrimoniais — as quais não
são poucas em número, relevância ou complexidade.
B - Jurisdição
Processo judicial, modelo judiciário ou jurisdicional, adjudicação,
jurisdição: todos esses nomes servem para designar um modo específico
para a resolução de conflitos[48]: submeter o conflito à apreciação de um juiz cuja
autoridade não deriva das partes, mas é definida por uma organização política.
Embora o próprio conceito de jurisdição não envolva a submissão dos juízes a um
conjunto predeterminado de regras[49], a jurisdição existente nos Estados de Direito é marcada
pelo fato de que os juízes nomeados pela organização política apenas recebem
autoridade para decidir os casos de acordo com um conjunto predeterminado de normas, o qual pode ser chamado de
ordenamento jurídico positivo.
Diversamente da arbitragem, que
pode ocorrer sem a necessidade de uma autoridade que se imponha às partes, a
jurisdição pressupõe uma organização política centralizada, pois ela somente
pode ocorrer onde há a consolidação de um poder centralizado, capaz de definir
certas autoridades como competentes para decidir sobre os conflitos sociais que
lhe forem apresentados. Eis aqui uma das características fundamentais do modelo
jurisdicional: a obrigatoriedade de submeter-se ao julgamento e acatar a
decisão final. Quando uma pessoa aciona outra frente ao judiciário
(tornando-se, então, autor de uma ação), o réu[50] não pode dizer simplesmente: não reconheço a autoridade do
tribunal. No modelo de adjudicação, a autoridade do tribunal é definida
previamente e não depende da aceitação das partes — motivo pelo qual podemos
dizer que se trata de um modelo heterônomo
de resolução de conflitos.
Tal heteronomia também se
manifesta no caráter impositivo do resultado do processo, pois a decisão tomada
pelo juiz é imposta às partes demandantes, ainda que ambas estejam descontentes
com ela. Assim, a validade da sentença, bem como a autoridade do juiz, não
dependem da aceitação das partes envolvidas no julgamento. Por conta disso, não
existe jurisdição propriamente dita no campo do direito internacional, pois não
há nesse âmbito nenhuma autoridade juridicamente superior aos Estados.
Já no direito interno dos estados
modernos, na medida em que os Estados atuais tendem a buscar o monopólio da
criação e da aplicação do direito, a jurisdição tornou-se o modelo jurídico
privilegiado, especialmente porque ele reforça o poder da organização política
institucionalizada. E é por isso que esse é modelo que, no Brasil, orienta a
organização do Poder Judiciário e também de vários outros órgãos estatais — como
os Tribunais de Contas, que fazem parte do Poder Legislativo, ou os Conselhos
de Contribuintes, que fazem parte do Poder Executivo.
Esse modelo de decisão está tão
intimamente ligado ao modelo estatal contemporâneo que muitas pessoas
reconhecem nele a única forma verdadeiramente jurídica de resolução de conflitos, o que implica a identificação
de jurídico e judicial. Assim, não são poucos os juristas que
entendem como direito as regras utilizadas (ou utilizáveis) pelos juízes e
tribunais, na sua atividade jurisdicional. Esse exagero não se restringe aos
positivistas normativistas, mas também está presente em vários representantes
das escolas sociológicas, não sendo poucos os que definem que direito é aquilo
que os tribunais definem como tal[51].
Pela importância desse modelo para
o Estado contemporâneo, quase todas as discussões jurídicas giram em torno
dele. Em especial, o jurista é formado quase que exclusivamente para lidar com
os modelos jurisdicionais — ainda que muitos deles nunca cheguem a operar nesse
campo. Os cursos de direito ensinam basicamente os códigos de processo (regras
que disciplinam o comportamento dos tribunais) e as leis que estabelecem
direitos e deveres para as pessoas (os quais podem ser demandados frente a um
tribunal). Mas não devemos perder de vista que o espaço do modelo jurisdicional
vem sendo redefinido, especialmente na última década, bem como demais métodos
de composição de conflitos vêm adquirindo uma importância crescente na
sociedade contemporânea, especialmente em virtude de uma crescente consciência
dos limites da jurisdição.
VI - Articulando os mapas: avaliação crítica e comparativa das estratégias
Há dez anos, a arbitragem era praticamente ineficaz no
direito brasileiro, os juízes não tinham obrigações reais de buscar uma conciliação
entre as partes, não havia juizados especiais e sequer se tratava a mediação
como uma forma jurídica de solução de conflitos. Porém, essa situação mudou
drasticamente no decorrer da última década e, se a um profissional do direito
já bastou conhecer os meandros do processo judicial, hoje ele precisa saber
escolher o método mais adequado para o conflito que a ele cabe ajudar resolver.
Se, há dez anos, um cliente procurasse um advogado e lhe
colocasse um problema, a este profissional normalmente caberia decidir que tipo
de ação judicial seria a mais adequada. Hoje, contudo, ele precisa conhecer as
várias estratégias de enfrentamento dos conflitos e não pode perder de vista
que pode ser mais adequado optar pela mediação, pela conciliação ou pela
arbitragem — ou, o que eleva bastante o nível de complexidade da questão, por
uma combinação dessas várias estratégias. Façamos, então, um ligeiro estudo
sobre as vantagens e desvantagens de cada um desses métodos.
A - Mediação e Conciliação
Embora a
autocomposição direta seja o início do processo de composição de quase todo
conflito[52], muitas vezes as partes não conseguem chegar a resultados
adequados sem a intervenção de um terceiro imparcial. Quando existe um
comprometimento negativo ou um baixo grau de comprometimento positivo entre as
partes, a utilização de técnicas de mediação tende a ser muito útil, pois a
solução adequada de uma série de conflitos passa pela sensibilização de uma
parte em relação à justiça dos interesses da outra, bem como do desenvolvimento
de uma consciência mais aprofundada de seus próprios sentimentos e desejos.
Essa transformação
do conflito, contudo, nem sempre se mostra suficiente, pois há várias situações
em que é preciso estabelecer acordos, decidir questões pontuais, fazer
negociações variadas. Mesmo em um caso de direito de família, que é o mais
típico campo de mediação, é preciso definir o valor da pensão alimentícia, as
datas em que cada um dos pais buscará o filho na escola, que bens ficarão com
cada um, além de uma série de outras coisas. Nessas hipóteses, por maior que
seja o comprometimento entre as pessoas, técnicas de conciliação podem ser
utilizadas de forma muito útil na tentativa de produzir um ajuste de condutas
que possa ser aceito consensualmente.
Portanto,
estratégias de mediação e de conciliação precisam ser utilizadas muitas vezes
em conjunto, na tentativa de possibilitar a produção de uma relação estável
entre as partes em
conflito. Além disso, essas estratégias devem ser utilizadas
mesmo por juízes (e por árbitros, se for o caso), pois há regras no próprio
direito positivo determinando que os juízes têm o dever de buscar inicialmente
o acordo e decidir por si mesmo apenas em casos nos quais o acordo não é
possível (como em direitos indisponíveis) ou não foi alcançado. Portanto, essas
estratégias, longe de serem incompatíveis, são extremamente importantes para o
próprio exercício contemporâneo do poder judicial.
Outra vantagem
desses processos é que, quando realizados de maneira extrajudicial, eles podem
ser mantidos em sigilo[53], o que é muito relevante em uma série de casos. Além
disso, mesmo que não resolvam todos os problemas que aflorem dentro de uma
relação conflituosa, a mediação pode ser capaz de reduzir o nível de tensão e a
conciliação pode eventualmente resolver alguns problemas pontuais, o que
provavelmente facilitaria bastante a resolução dos litígios restantes pelos
modos de heterocomposição.
B - Arbitragem
A consciência dos limites do Poder
Judiciário e do modo adjudicativo de resolução de conflitos, aliada a uma mudança
legislativa que autonomizou as decisões arbitrais, vedando a possibilidade de
que o judiciário as reavalie em seu conteúdo[54], tem feito com que a arbitragem ganhe um espaço crescente
no Brasil.
Os defensores da arbitragem
normalmente apontam como sua vantagem mais evidente a celeridade, que pode ser
garantida nesse modelo de forma muito mais eficiente que na jurisdição, pois a
liberdade que as partes têm para definir o processo decisório normalmente
resulta em processos mais ágeis, com prazos mais curtos e pequena ou nenhuma
possibilidade de recurso. Para alguns casos específicos, essa vantagem é
extremamente relevante, pois a demora judicial pode gerar prejuízos para ambas
as partes envolvidas.
Imagine, por exemplo, uma questão
em que se discutisse se um determinado componente de um satélite de
telecomunicações cumpria ou não os requisitos estabelecidos no contrato. Nessa
hipótese, se a decisão final for tomada em 3 ou 4 anos, o que não seria de
forma alguma anormal, a tecnologia utilizada possivelmente já seria obsoleta à
época da sentença. Assim, se, no início, era possível resolver o litígio de
modo a possibilitar a conclusão do projeto (determinando-se, por exemplo, o
dever de o fornecedor oferecer um equipamento adequado), a demora poderia fazer
com que ninguém mais tivesse interesse econômico no objeto do conflito, o que
reduziria a questão a uma ação indenizatória.
A demora tornaria inútil a
prestação jurisdicional — e a jurisdição não tem como ser rápida em casos muito
complexos, pois, além de ser necessário observar processos burocráticos
rigorosamente definidos, a garantia do direito de ampla defesa faz com que haja
uma série imensa possibilidades de recorrer das decisões. Assim, por mais que
se tente agilizar os processos judiciais, eles não chegariam a ser tão rápidos
como é possível em um processo arbitral.
Essa celeridade, porém, tem um
custo que pode ser bastante elevado. Embora seja muito propagada a idéia de que
a arbitragem é mais barata que a jurisdição, é temerário fazer uma afirmação tão
geral como essa, pois a arbitragem pode ter custos mais altos para as partes
que a jurisdição. Isso ocorre especialmente porque, enquanto as partes precisam
remunerar toda a estrutura ligada ao juízo arbitral, o Poder Judiciário é
praticamente sustentado pelo Poder Público, que arca com a maior parte dos
custos, como a remuneração dos juízes e dos servidores do Poder Judiciário. Já
no processo arbitral, as partes têm que remunerar profissionais especializados
(e conseqüentemente caros), como advogados, árbitros e técnicos, além de
sustentar toda a estrutura administrativa envolvida. Assim, embora o custo da
jurisdição talvez possa ser maior, o custo final para as partes pode ser bem
menor, especialmente em processos que envolvam pequenas quantias.
Entretanto, para vários setores,
esse custo é plenamente compensado por uma garantia que a jurisdição não pode
conferir: o sigilo. Exceto em certos casos especiais, o processo judicial é
público, as audiências são públicas, a decisão pode ser acessada por qualquer
pessoa. Para muitas pessoas, especialmente para grandes empresas, estabelecer
um debate público acerca de uma série de temas pode ser tão desgastante para a
sua imagem que um processo sigiloso, como é possível na arbitragem e as
diversas formas de autocomposição, representaria uma saída mais adequada, ainda
que eventualmente mais onerosa.
Apesar dessas vantagens relativas
sobre a jurisdição, há um problema severo na arbitragem que é normalmente
deixado de lado. O resultado da arbitragem é uma decisão que tem o status
de título executivo judicial, ou seja, ele equivale a uma sentença prolatada
por um juiz do Estado. Com isso, se a parte perdedora decidir não cumprir a
decisão arbitral, a execução forçada não pode ser realizada pelo árbitro, pois
a lei atribui apenas ao Judiciário o poder de cobrar coercitivamente uma
dívida. Assim, se a parte vencida no processo arbitral não cumprir
espontaneamente a decisão, será necessário entrar na justiça para efetuar a
cobrança, o que restringiria muito (ou mesmo anularia) as vantagens iniciais de
sigilo e celeridade, especialmente porque a execução é responsável por boa
parte da demora nos processos judiciais.
Outros problemas relativos à
arbitragem serão discutidos no ponto seguinte, pois são idênticos aos
enfrentados na adjudicação. Isso ocorre porque esses dois modelos são
extremamente similares, pois ambos envolvem a atribuição a um terceiro do poder
de decidir um litígio, de acordo com regras predeterminadas[55]. Como afirma Warat, tanto o árbitro como o juiz julgam baseados
na verdade formal (ou seja, julgam apenas com base nas evidências trazidas para
o processo) e decidem o litígio baseados nas versões apresentadas pelos
representantes das partes (que nem sempre expressam a verdadeira vontade dos
representados, seja por não a conhecerem ou por não lhes convir dizê-las), e
tanto a sentença como o laudo arbitral apenas determinam o encerramento do
litígio, não resolvendo a relação afetivo-conflituosa das pessoas envolvidas[56]. Todas essas semelhanças fazem com que a maior parte das
críticas apontadas ao modelo judicial seja também aplicável ao modelo arbitral,
especialmente no tocante ao pensamento normativista e à limitação ao litígio.
Por fim, cabe ressaltar que a arbitragem é a
via que menos tipos de conflitos pode atingir, pois limita-se aos direitos
disponíveis, especialmente os patrimoniais. Embora esse seja um grande campo, o
qual envolve todas as relações comerciais e muitas das relações civis, há uma
série de questões relevantes que não são abrangidas pela arbitragem em campos
como o direito de família. Além disso, a arbitragem não pode ser utilizada nos
conflitos que envolvem o Estado, o que retira de seu campo de abrangência todo
o direito público. Porém, embora se trate de uma via relativamente estreita,
ela pode ser bastante eficaz para a resolução de uma série de controvérsias,
especialmente em matérias de fundo técnico ou que têm uma dimensão emocional
reduzida, quando for muito provável que o perdedor cumpriria espontaneamente as
decisões do árbitro.
C - Modelo judicial
O modelo judicial responde bem ao individualismo das
sociedades contemporâneas, pois tende a tratar as pessoas de forma igualitária
e possibilita a resolução de conflito entre pessoas estranhas entre si e que
não têm qualquer interesse convergente. Além disso, trata-se de um modelo capaz
de adquirir um alto grau de institucionalização, gerando carreiras
especializadas, o que pode elevar a eficiência do sistema. Todavia, a
burocracia assim criada pode ter uma série de problemas, como excesso de formalismo
e afastamento dos conflitos reais, bem como a criação de mecanismos de exclusão
e manutenção do status quo.
Assim, se o estabelecimento de regras predeterminadas é uma
estratégia bastante adaptada à racionalidade burocrática típica dos Estados
modernos, voltada à definição de padrões claros e previsíveis de organização,
ela também gera alguns problemas. Um sistema
judicial organizado de forma burocrática normalmente funciona por meio da
aplicação de normas gerais aos casos concretos, definindo assim uma solução juridicamente correta. Trabalhar sempre
com regras predefinidas é uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que
limita certos tipos de arbitrariedade, cria certos espaços de arbitrariedade legitimada (ou discricionariedade, para usar um termo
mais técnico).
É preciso interpretar as normas. É
necessário definir o significado de expressões ambíguas. É preciso lidar com os
casos em que as normas são omissas ou contraditórias. Esses são os limites de
todo sistema fundado em regras gerais preestabelecidas — e esses limites são o
objeto principal de estudo da presente disciplina. Por trabalhar com regras
predeterminadas, apenas os critérios fixados nas normas são considerados
juridicamente relevantes. Assim, o sistema pode tornar-se excessivamente
rígido, como testemunha o velho adágio latino dura lex, sed lex (a lei é
dura, mas é a lei), o qual, aliás, já foi usado para justificar muitas
arbitrariedades praticadas em nome da lei.
Por outro lado, a flexibilização do sistema,
quando se trabalha com normas predeterminadas, apresenta uma série de
dificuldades. Podemos atribuir um sentido a uma palavra constante em uma lei e,
logo em seguida, atribuir significado completamente diverso à mesma palavra
quando ela ocorre em uma outra norma? Quando é possível tratar desigualmente as
pessoas? Como evitar a influência exagerada da subjetividade do juiz? Essas
questões sempre são conturbadas, quando tratamos de um modelo jurisdicional
fundado em normas preestabelecidas.
1. Limites inerentes ao modelo judicial
Como foi ressaltado, o modelo
jurisdicional de resolução de conflitos desempenha o papel de maior relevo no
tocante à justiça oficial: é o Poder Judiciário que tem o dever de aplicar as regras
criadas pelo próprio Estado, fazendo com que a sociedade conforme-se a esses
padrões. Dessa forma, não se deve estranhar o fato de que a própria
Constituição Federal estabeleça, no seu art. 5o, que nenhuma lesão
ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do judiciário. Assim, há um
princípio jurídico que exige a universalidade da jurisdição: a sua aplicação,
ao menos potencial, a todo e qualquer conflito surgido no âmbito de poder do
Estado. Ressaltamos que esse princípio pode ser visto (ao menos) por duas
perspectivas muito diversas.
Para
aqueles que enxergam no Judiciário a forma de se fazer justiça, o princípio da
universalização do acesso ao Judiciário é visto como uma grande conquista
democrática, pois nem mesmo a lei pode fazer com que certas pessoas ou atos
sejam imunes à intervenção judicial. Nessa medida, o princípio do acesso à
justiça é entendido como um dos pilares de um Estado de direito.
Todavia,
para aqueles que entendem que o Estado deve abster-se o mais possível de
interferir na vida das pessoas, a universalização da autoridade judicial pode
ser entendida como um poder demasiado grande nas mãos do Estado. Quando um
Estado determina que um direito é indisponível, isso significa que a última
palavra quanto a esse direito sempre estará nas mãos do próprio Estado. E qual
é o limite da autoridade do Estado?
Pode
um doente terminal decidir pela eutanásia? Pode alguém enterrar seus mortos no
jardim de sua casa, para obedecer sua última vontade? Pode alguém ser racista?
E pode ensinar essa postura a seus filhos? Pode alguém ser um mendigo, ainda
que tenha possibilidades de trabalhar? Pode o Estado determinar que todo órgão
de uma pessoa morta pode ser utilizado em transplantes? Pode o Estado obrigar
um judeu a trabalhar em uma eleição realizada em um sábado? Pode o Estado
estabelecer que o topless é proibido
na Praia de Copacabana?
Independentemente das respostas
que vocês ofereçam a essas perguntas, pode o Estado estabelecer que será sempre
dele a última palavra quando essas questões vierem à tona? Talvez seja a opção
mais conveniente. Talvez seja a opção mais aceitável, mas comporte algumas
exceções. Talvez seja uma forma de ocultar a dominação por meio de uma
estrutura burocrática. As respostas a essa pergunta serão resultado das
posturas ideológicas de cada um — não parece razoável admitir que existe apenas
uma resposta correta para essa questão.
E fazemos essas observações por um
único motivo. No estudo do direito, normalmente o Judiciário é apresentado aos
estudantes apenas em sua face bela: uma instituição voltada para fazer justiça
— ou ao menos para aplicar as regras que formam a justiça possível. As suas faces obscuras normalmente são ocultadas
— deixamos para que vocês a conheçam na sua vida prática. Todavia, mesmo para
os que conhecem essas vicissitudes, os problemas são encarados como exceções,
como imperfeições na aplicação de um modelo adequado. Raramente se critica o
modelo judicial, embora se admita que a sua prática é muitas vezes desvirtuada.
E gostaria de chamar a atenção
para o fato de que o próprio modelo judicial tem seus limites. Certos pontos
que alguns descreveriam como aplicação
imperfeita poderiam ser classificados como uma imperfeição inerente ao modelo. O juiz é sempre um homem e,
portanto, não podemos supor que ele será imparcial, onisciente e incorruptível.
As regras gerais têm vários significados possíveis. A jurisdição atual segue um
modelo centralizador e burocrático e não pode ser entendido fora do contexto do
Estado capitalista contemporâneo, com todas as suas virtudes e limitações.
Portanto, é preciso não ter uma
visão idealizada do direito e do Poder Judiciário: essas figuras precisam ser
entendidas dentro de suas próprias contradições, como qualquer outra
instituição criada pelo homem. Como disse Tercio Sampaio Ferraz Jr.:
O direito
contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo para
expressar e produzir a aceitação do status
quo, da situação existente, mas aparecendo também como sustentação moral da
indignação e da rebelião. O direito,
assim, de um lado, nos protege do
poder arbitrário, exercido à margem de toda regulamentação, nos salva da
maioria caótica e do tirano ditatorial, dá a todos oportunidades iguais e, ao
mesmo tempo, ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento
manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso
de técnicas de controle e dominação que, pela sua complexidade, é acessível
apenas a uns poucos especialistas.
Assim, o direito tem contradições
internas e complexidades que não podem ser reduzidas a um modelo coerente e
simples. Portanto, não se pode esperar outra coisa de uma instituição que tem
como função dizer o direito: uma
tentativa constante de coerência, mas uma estrutura e uma prática
necessariamente contraditória. E fazer com que as pessoas relevem os problemas
da prática cotidiana por identificá-la à prática imperfeita de um modelo ideal
é um dos mais antigos instrumentos de ocultação ideológica da realidade.
Ademais, o direito e o judiciário
são instrumentos e, como todo instrumento, são muito úteis para certas tarefas,
porém inúteis, e até mesmo perversos, para outras. É preciso, pois, conhecer os
limites dos nossos instrumentos, para que não exijamos deles mais do que eles
podem nos proporcionar. E o objetivo deste curso é justamente o estudo de
alguns desses limites.
2. Limites do pensamento normativista
Como já foi dito anteriormente, é
possível existir um modelo jurisdicional no qual o papel do juiz seja o de
resolver os conflitos apenas com base em suas percepções subjetivas. A
sabedoria do rei Salomão, por exemplo, estava na sua capacidade de tomar
decisões justas e não na sua habilidade em aplicar regras preexistentes aos
problemas do presente. O rei absolutista não estava submetido às regras
jurídicas que ele mesmo criava, pois poderia modificá-las a qualquer tempo. Assim,
a sua vontade era o padrão pelo qual ele julgava os conflitos a ele submetidos.
Todavia, esse não é o modelo
jurisdicional vigente nos atuais Estados de Direito. Nesse tipo de organização
política, todas as pessoas estão submetidas às regras jurídicas e a função dos
juízes é a de resolver os conflitos com base nas normas do Direito. Do juiz não
se exige que seja sábio, virtuoso ou justo (afinal, o que é a sabedoria, a
virtude ou a justiça?), mas que aplique devidamente as regras preestabelecidas
— ou ao menos é essa a concepção dominante no senso comum dos juristas. A
partir do momento em que se entende que os conflitos sociais devem ser
resolvidos por meio da aplicação de regras gerais preexistentes, a função
jurisdicional ganha contornos mais ou menos claros e tende a formar uma
estrutura burocrática especializada.
Temos, então, pessoas escolhidas
para ocupar permanentemente o cargo de juízes, as quais precisam ter uma
formação especial para desempenhar suas funções. Certas pessoas especializam-se
no aconselhamento das pessoas que precisam dirigir-se aos juízes: os advogados.
E hoje em dia raramente é possível mover a máquina judiciária sem estar
representado por um advogado. Também há outras funções que se especializaram: o
ministério público, os peritos, os diretores de secretaria, os serviços de
jurisprudência e de informações processuais, etc.
Assim, em torno da atividade
jurisdicional, formou-se uma burocracia altamente especializada. No centro
dessa burocracia, estão os órgãos judiciais, cuja função declarada é a de
aplicar as regras preexistentes aos casos concretos e, assim, decidir os
conflitos com base no Direito — e não na vontade subjetiva e caprichosa do
juiz. Mas essa função envolve uma série de questões de dificílima solução, pois
a aplicação de regras gerais a casos específicos é sempre problemática.
O que é interpretar? Existe apenas
uma interpretação correta para cada norma jurídica? Se existe tal
interpretação, existe também um método que nos permite encontrá-la? Se não
existe tal interpretação, qual deve ser o papel do judiciário? Não será uma
utopia pensar que a função dos juízes é a de aplicar as regras preexistentes e
não a de criar novas regras para os casos concretos? É possível haver uma
decisão judicial na qual as posições subjetivas do juiz não tenham influência?
Questões como essas orientam toda a discussão sobre hermenêutica jurídica, que
tem ganho cada vez mais espaço nos estudos filosóficos e dogmáticos
contemporâneos.
3. Concentração no litígio
Além disso, um dos grandes problemas que acompanha o modelo
de adjudicação é o fato de que ele tende a desconsiderar os conflitos reais e
preocupar-se apenas com a aplicação das regras. Em outras palavras, importa o
litígio (parcela do conflito decidível à luz das regras do direito positivo) e
não o conflito (oposição real de interesses), motivo pelo qual os juízes tendem
a aplicar as regras, ainda que isso não resolva o conflito ou até mesmo o
acirre, pois o seu objetivo primordial é encerrar o litígio e não transformar o
conflito[57].
Ademais, mesmo que atualmente, na busca de uma decisão mais
adequada, cada vez mais juízes busquem conhecer mais a fundo o conflito
subjacente, eles não podem romper efetivamente os limites do litígio, pois é o
pedido das partes que determina o litígio e a autoridade judicial não pode
decidir além do que lhe foi pedido. Nessa medida, concordo com Boaventura de
Sousa Santos quando ele afirma que só a “mediação[58]
pode subverter a separação entre o conflito processado e o conflito real,
separação que domina a estrutura processual do direito do estado capitalista e
que é a principal responsável pela superficialização da conflituosidade social
na sua expressão jurídica”[59].
Portanto, como os poderes do juiz
estão adstritos ao litígio, a única forma de ultrapassar essa barreira é
estimular a autocomposição das partes, por meio de estratégias de mediação e/ou
conciliação, que estimulem um exercício autônomo de transformação do conflito,
pois apenas os próprios envolvidos podem superar os limites do litígio.
D - Substituição da autonomia das partes pela autoridade estatal
Por fim, cabe ressaltar que o processo judicial é um
processo de substituição da autonomia das partes pela autoridade do juiz. Esse
processo é justificado ideologicamente com base no pressuposto de que o juiz
pode intervir de maneira neutra no conflito porque ele julga com base em regras
definidas pelos poderes políticos legítimos e aplicadas de modo objetivo. Com isso, o discurso do judiciário é sempre voltado para a
imposição da autoridade, pois a sua função primordial é justamente a de impor
decisões heterônomas às partes em litígio. Com isso, trata-se de um modelo que não estimula a
autonomia das partes, mas prima por restringi-la mesmo quando trabalha dentro
de um discurso de conciliação.
Essa
imposição de poder trabalha não apenas com o mitos da objetividade da lei e da
neutralidade do juiz, mas com toda uma panóplia de meios que subtraem das
partes a sua autonomia. Por a adjudicação não segue apenas um procedimento
formal, mas toda uma série de ritos que ressaltam o poder do juiz, a partir de
estratégias de violência simbólica: o juiz tem uma veste peculiar, senta-se
acima de todos, é chamado por um pronome de tratamento específico, utiliza
normalmente (ou ao menos em casos específicos) uma linguagem inacessível aos
leigos, dita ao escrivão tudo o que vai para os autos, tem o monopólio do
direito de perguntar, etc.
Trata-se de todo um ritual que tende a impor às partes um
temor reverencial ao juiz (e conseqüentemente ao poder que ele representa), que
pode ser eficiente no sentido de criar uma mística que tenda a gerar uma maior
respeitabilidade para as decisões. É preciso distanciar o juiz dos leigos para
que estes aceitem que ele decida sobre a sua vida, coisa que nunca admitiriam
de um de seus pares. Embora esse tipo de mística seja tanto mais útil quanto
maior for a ignorância das partes, mesmo os que conhecem o embuste não deixam
de ser tocados pela “aura” resultante do processo de mistificação.
Porém, mesmo para os leigos mais céticos, há um mecanismo capaz
de tolher a sua autonomia: frente ao judiciário, apenas os advogados podem
falar. É claro que são abertas algumas exceções, especialmente em causas de
pequeno valor econômico, mas, na maioria dos casos, a parte não tem direito de
falar em seu próprio nome. Para ingressar no judiciário, as partes contam a sua
versão ao advogado, que seleciona os pontos relevantes para o discurso
judiciário, verte o problema em linguagem técnica e oferece uma petição “em
nome” do seu representado.
Com isso, o processo judicial é um peça em que os papéis
centrais são desempenhados pelo juiz e pelos advogados, restando às partes
realizar algumas pontas. Mesmo quando elas deveriam desempenhar o papel
central, ou seja, nas tentativas de conciliação institucionalmente previstas,
elas são deslocadas dos terrenos em que se sentem seguras e introduzidas em um
palco estranho, no qual é imensamente difícil exercer sua autonomia. Além
disso, mesmo nessas horas, elas estão sob a orientação de seus advogados e sob
a pressão institucional que, repetidas vezes, pressiona as partes em busca de
um acordo que agilize o processo.
Enfim, o processo judicial não tem
como deixar de tolher a autonomia das partes porque toda a sua construção visa
a substituir essa autonomia pela autoridade do juiz e da lei. Portanto, toda
decisão judicial envolve um grau de violência (mesmo que principalmente de
violência simbólica) incompatível com o livre exercício da autonomia das
partes. Embora seja certo que várias mudanças legislativas tenham buscado
diminuir esse grau de violência (criando espaços maiores para a mediação,
exigindo uma postura mais conciliadora pelos juízes, exigindo justificativas
mais completas para as sentenças, etc.), essa violência contra a autonomia é
estrutural no sistema de adjudicação e, nessa medida, não pode ser anulada,
sequer reduzida significativamente.
Essa violência, contudo, apenas é
sentida como um problema por aqueles que pretendem que os conflitos sejam
resolvidos de maneira autônoma. Para muitos, ela é a garantia da justiça
possível, pois o juiz pode impor à sociedade os padrões gerais definidos pelos
poderes políticos constituídos ou mesmo inovar, buscando aplicar padrões de
justiça que sejam aceitáveis de acordo com os valores constitucionais (ou
qualquer outro padrão de justiça).
Além disso, a supressão da
autonomia pode ser, em muitos casos, um preço razoável a pagar pelo
encerramento de um litígio, pois, se o encerramento de alguns litígios pode
agravar o conflito subjacente, há uma série de outros casos em que a manutenção
do litígio é que tende a agravar o conflito. A solução heterônoma de litígios
pode ser um mecanismo limitado de pacificação social, mas é uma estratégia que
pode ser útil em muitos casos, ainda que seja para evitar a sensação de
insegurança que litígios infindáveis tendem a gerar na sociedade.
Por fim, mesmo os mais ferrenhos
defensores da orientação transformadora concedem que há vários casos em é
preciso administrar a violência social segundo padrões heterônomos. Isso ocorre
porque estabelecimento e a imposição de normas heterônomas não é, em si um
problema, pois o exercício da violência institucionalizada, impondo o poder da
sociedade organizada sobre os desejos de alguns indivíduos, é percebido como
justificável em variadas hipóteses: é preciso punir certos crimes, é necessário
coibir algumas práticas sociais, bem como é preciso cobrar determinadas multas
e executar certas dívidas. Há, pois, muitas questões em que a mediação talvez
possa ter alguma utilidade, mas certamente não conseguiria resolver os
problemas, tanto pela ausência de uma dimensão afetiva quanto pela ausência de
um comportamento cooperativo que é o seu pressuposto básico.
O problema, portanto, não é a mera
existência das normas heterônomas ou dos juízes, mas a hegemonia de uma concepção
reducionista que limita a atividade e o saber dos juristas à resolução
heterocompositiva de litígios, com base na imposição dos padrões de conduta
definidos nas regras estatais. Observe-se, pois, que, se as críticas mais
severas constantes deste texto foram dirigidas ao modelo judicial, não se trata
de uma recusa desse método como sendo a priori ineficiente ou
equivocado, pois tanto a sua eficiência como a sua adequação somente podem ser
pensadas em relação a alguns tipos específicos de problemas, sendo insensato
tanto culpar este método por não resolver todas as questões quanto acusá-lo de
não resolver nenhuma. Se optei por criticá-lo com mais minúcia foi porque,
apesar de o senso comum reconhecer a existência uma “crise” no judiciário,
normalmente pensa-se que a solução dessa crise está no aperfeiçoamento dos
processos de adjudicação, sem levar devidamente em conta que certas limitações
são inerentes à própria estrutura do método judicial de heterocomposição.
A jurisdição ainda é entendida
como o método jurídico por excelência, e todas as outras estratégias de
composição são normalmente identificadas como alternativas que teriam por
função desafogar o sistema judiciário, para que ele pudesse cumprir
adequadamente suas funções. Portanto, este texto não é voltado contra o modelo
judicial (o que seria uma estupidez), mas contra a concepção jurídica
tradicional, que tanto sobrevaloriza as suas vantagens quanto oculta os seus
limites.
VII - Conclusão: pela autonomia dos métodos
Desde a formação dos Estados de
Direito contemporâneos, com sua pretensão monopolística, o modelo judicial
passou a ser visto como o modo jurídico por excelência, senão como o único
modelo jurídico de resolução de conflitos. O pressuposto básico desse modelo é
o de que as melhores soluções seriam conseguidas a partir de uma aplicação
técnica de normas jurídica preestabelecidas, por um corpo de magistrados com
formação científica adequada, que disporia de critérios hermenêuticos que lhes
possibilitaria extrair do direito positivo uma solução correta para cada caso
juridicamente relevante. Esse tipo de posicionamento coloca toda a
responsabilidade pela decisão justa no legislador (que deve fazer a lei de
forma adequada) e no juiz (que deve aplicar a lei da maneira correta).
Com isso, tal modelo centraliza
toda a sua atenção nas normas jurídicas (em sua criação e aplicação) e na
resolução do litígio (que passa a ser o recorte do conflito que se pode
resolver com base nas regras do direito positivo), perdendo de vista a
multidimensionalidade do conflito e privilegia especialmente a análise de
litígios que não têm um elemento valorativo ou emotivo muito forte.
Nas últimas décadas, esse modelo
tem entrado em crise por uma série de motivos inter-relacionados. Por um lado,
o modelo funcionava razoavelmente bem, desde que não houvesse muitos conflitos
para resolver judicialmente, o que implicava a existência de mecanismos
socialmente eficazes de solução não-judicial de conflitos ou que não houvesse
uma possibilidade prática efetiva de levar uma série de conflitos à apreciação
do poder judiciário.
Porém, quando cresceram
concomitantemente o nível de conflituosidade não resolvida por mecanismos
sociais e a demanda por soluções jurisdicionais, o Poder Judiciário não se
mostrou capaz de resolver o imenso número de ações judiciais em tempo hábil.
Quanto mais aumentou o número de direitos garantidos aos cidadãos (o que
ocorreu especialmente nos Estados organizados pelo modelo Social ou
Democrático) e estabeleceu-se uma consciência de que fazia parte da cidadania o
direito de acesso ao Judiciário, mas o próprio Judiciário viu-se incapaz de
oferecer à sociedade a resposta que o modelo lhe prometia.
Além disso, o modelo de resolução
de conflitos baseado na aplicação de regras a casos concretos tende a desligar
o litígio do conflito e a optar por padrões formalistas que não atendem
devidamente aos anseios sociais de justiça, especialmente quando as próprias
normas não encontram-se devidamente adaptadas às realidades sociais cambiantes.
Ademais, percebeu-se que uma série de questões estavam ligados a conflitos
multidimensionais, nos quais a solução de um eventual litígio que aflore não
representa uma diminuição real do nível de conflituosidade nas relações
sociais. Tornaram-se, então, patentes as limitações do modelo judicial como
forma de diminuição das tensões existentes nas relações sociais conflituosas.
Embora não caiba nos limites deste trabalho aprofundar a
chamada “crise do Judiciário”, a percepção dessa crise (seja ela real ou não)
fez com que muitas pessoas passassem a evitar levar suas questões ao Poder
Judiciário e com que o próprio Estado passasse a estimular a resolução não
judicial dos conflitos. Com isso, ganharam importância os chamados modos
alternativos de solução de conflitos, também chamados, por influência da teoria
norte-americana, de métodos de RAD. Observe-se que, se eles são considerados
alternativos, é porque o modelo vigente coloca a jurisdição como o método
padrão, de forma que os desenvolvimentos da mediação, da conciliação e da
arbitragem são vistos por muitos como uma forma de evitar uma sobrecarga do
sistema judicial ou de resolver conflitos que não recebem resposta adequada de
modelos adjudicatórios estatais.
Porém, parece chegado o momento em que esses vários métodos
conquistaram autonomia suficiente para que mereçam ser chamados não de métodos alternativos,
mas simplesmente de métodos (ou modos, modelos, espécies, mecanismos,
estratégias, etc.), pois cada um desses modelos tem suas vantagens e
desvantagens, resolvendo bem alguns conflitos, sendo limitados em outros, e até
mesmo danosos em alguns casos.
É preciso, portanto, rever a nossa cartografia tradicional
e reconstruir um mapa geral, em que todos os métodos sejam compreendidos como
estratégias específicas no tratamento jurídico da conflituosidade social, e não
mais como elementos auxiliares da jurisdição na resolução das disputas ou
litígios. Somente com essa nova cartografia será possível aos juristas ter
consciência adequada das virtudes e limitações de cada um desses métodos e, conseqüentemente,
tornar-se capaz de escolher e combinar as diversas estratégias compositivas, de
modo a auxiliar as pessoas a lidar adequadamente com as suas diferenças e com a
conflituosidade que permeia a vida de todos nós.
Bibliografia
Almeida, Fábio Portela Lopes de. A Teoria dos Jogos: uma
fundamentação teórica dos métodos de resolução de disputa.
Azevedo,
André Gomma de. Perspectivas metodológicas do processo de mediação:
apontamentos sobre a autocomposição no direito processual.
Correas, Óscar. Crítica da ideologia jurídica: ensaio
sócio-semiológico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995
Cooley, Thomas W. A advocacia na mediação. Brasília:
UnB, 2001.
Costa, Alexandre Araújo. Introdução ao direito. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001.
Entelman, Remo F. Teoría de conflictos: hacia un nuevo paradigma.
Barcelona: Gedisa, 2002.
Folger, Joseph P. e Bush, Robert A.
Baruch. La mediación transformadora y la intervención de terceros: los sellos
distintivos de un profesional transformador. em Schnitman,
Dora Fried (org.). Nuevos paradigmas en la resolución de conflictos:
perspectivas y prácticas. Buenos Aires: Granica, 2000.
Guattari, Félix. Cartografias esquizoanalíticas.
Buenos Aires: Manantial 2000.
Mill, John Stuart. Utilitarismo.
Em Mill, J. S. A Liberdade/Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Pires, Amom Albernaz. Mediação e Conciliação: breves reflexões para uma
conceituação adequada. In: Azevedo,
André Goma de (org.). Estudos de Arbitragem, Mediação e Negociação.
Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
Riskin, Leonard L. Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do
mediador: um padrão para iniciantes. In: Azevedo,
André Goma de (org.). Estudos de Arbitragem, Mediação e Negociação.
Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
Ross, Alf. Direito e justiça. São Paulo: Edipro,
2000.
Santos, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder. Porto Alegre: Fabris,
1988.
Schnitman, Dora Fried. Introducción. Em Schnitman,
D. F. (org.). Nuevos paradigmas en la resolución de conflictos:
perspectivas y prácticas. Buenos Aires: Granica, 2000.
Santos, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente:
contra o desperdício da experiência. São Paulo: Edipro, 2000.
Solon, Ari Marcelo. Dever jurídico e
teoria realista do direito. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 2000.
Suares, Marinés. Mediación. Conducción de disputas, comunicación y técnicas.
Buenos Aires: Paidós 2002.
Villey, Michel. Seize essais de philosophie
du droit dont un sur la crise universitaire. Paris: Dalloz, 1969.
Warat, Luis
Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus,
2001.
Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação em Warat, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a
mediação no direito. Buenos Aires: Almmed, 1999.
Winslade, John e Monk, Gerald. Narrative
mediation: a new approach to conflict resolution. San Francisco:
Jossey-Bass Publishers, 2000.
[*] Texto
originalmente publicado em Azevedo,
André Gomma de (org.). Estudos em
Arbitragem, Mediação e Negociação. 1 ed. Brasília: Editora Grupos de
Pesquisa, 2003, v. 3, p. 161-201, livro cujo texto integral está disponível em http://www.unb.br/fd/gt/links/artigos.htm.
[2]
Utilizamos aqui a metáfora cartográfica, que foi especialmente desenvolvida nas
obras de Guattari e Deleuze e recentemente retomada por Boaventura. [Vide Guattari, Cartografias esquizoanalíticas, pp. 31 e
ss., Deleuze
e Guattari, Mil platôs,
vol. I, e Santos, A crítica da razão indolente, pp. 189 e ss.]
[3]
Nas teorias ligadas à cultura anglo-saxã ou por ela influenciadas, essa
dimensão constitutiva (e não apenas representativa) da linguagem é normalmente
vinculada a uma concepção por eles chamada de social construcionist theory
(teoria do construtivismo social). Porém, são várias as concepções que, desde o
início do século XX, especialmente a partir do segundo Wittgenstein e de
Heidegger, acentuam a dimensão constitutiva (ou construtiva) da linguagem.
[4] Schnitman, Nuevos paradigmas em la resolución de conflictos, p. 31.
[5] Vide Warat,
O ofício do mediador, e Bush
e Folger, La mediación
transformadora y la intervención de terceros.
[6]
Vide Winslade e Monk, Narrative mediation e Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação.
[7]
Pois parece-me uma ingenuidade epistemológica extemporânea confundir o mapa com
o mundo, tal como fizeram os grandes defensores das teorias gerais dos dois
séculos passados e suas releituras atuais, como a tentativa de Remo Entelman de
construir uma teoria geral do conflito nos moldes formalistas da Teoria Pura do
Direito de Kelsen. [Vide Entelman, Teoría de conflictos: hacia
un nuevo paradigma]
[8]
Cabe observar que o pensamento estratégico não é necessariamente
individualista, pois mesmo o mais altruísta dos modos de pensar possui uma
dimensão estratégica, no sentido de que envolve um questionamento acerca das
conseqüências desejáveis e dos melhores meios de alcançá-las. Tampouco o
utilitarismo é necessariamente egoísta, pois, ao exemplo do que John Stuart
Mill [Mill, Utilitarismo], é
possível pensar a utilidade como social e não individual. Porém, o modelo
jurídico a que nos referimos pressupõe que o homem é um indivíduo que sempre
age racionalmente para atingir seus interesses individuais, o que
implica um raciocínio simultaneamente estratégico e individualista.
Penso que os termos mais significativos para indicar esse
modelo seriam individualista ou indiferente, mas, como essas
palavras são demasiadamente ambíguas na linguagem comum, creio que o seu uso
tenderia a acarretar mais confusão que entendimento. Em especial, há o problema
de a palavra “indiferente”, isoladamente, não explicar que esse agir seria
indiferente ao outro, mas não em relação interesses individuais do próprio
agente. Optei, então, em utilizar a expressão estratégico-indiferente
para fazer referência a esse modo de agir, apesar de ela ser ela demasiadamente
longa e cacofônica. De toda forma, devo confessar que, em alguns, pontos
termino por privilegiar a eufonia ao rigor e a falar apenas em agir
meramente estratégico para me referir ao agir estratégico individualista
voltado tão-somente para a garantia dos interesses individuais do agente.
[9]
Para uma descrição geral da teoria dos jogos, especialmente do equilíbrio de
Nash, vide Almeida, A teoria
dos jogos, item 2.1.
[10]
Nessa medida, creio ser correto afirmar que a teoria dos jogos tem uma matriz
individualista porque, apesar de basear-se em uma teoria formal de análise
matemática, o seu conceito operativo fundamental é o de interesse individual,
que não é um conceito meramente formal, nem poderia sê-lo, para que a teoria
tivesse alguma aplicabilidade prática e representasse algo além de uma
aplicação específica das regras de análise combinatória. Isso não significa,
porém, que a teoria dos jogos seja completamente inaplicável a conflitos que
envolvem um agir cooperativo (pois mesmo nesses conflitos existe uma dimensão
estratégica), mas que ela não é capaz de abarcar toda a complexidade desses
conflitos, dado que a sua aplicação implica a redução do vínculo de cooperação
a um interesse individual na satisfação do outro.
[11]
Acerca da destrutividade, considero pertinente a observação de Warat de que
“sentimentos de ternura e agressivos, em diversos graus, encontram-se em todas
as relações. A destrutividade, entretanto, é uma situação limite que tende ao
desaparecimento do outro, uma tentativa radical do medo para anular a
problemática que os encontros com o outro sempre colocam.” [vide Warat, O ofício do mediador, p.
63]
[12]
Convém ressaltar que desejar a felicidade do outro (ou, melhor dito, o que
achamos que deveria ser a felicidade para o outro) nem sempre é um índice de
comprometimento, pois não é incomum que desejemos o bem do outro principalmente
como uma forma de realizarmos apenas os nossos desejos individuais, de tal
forma que a realização da pessoa do outro nos interesse menos que a nossa
realização por meio delas.
[13]
Torna-se clara, aqui, uma aproximação da moral cristã e da teoria ética
kantiana, que acentuam que a moralidade está fundada em um respeito sincero
pelo outro em si mesmo considerado, condenando como imoral (ou ao menos amoral)
tratar outras pessoas apenas como objetos em um jogo estratégico de interesses.
[14] Santos, O discurso e o poder, p.
22.
[15] O
que não quer dizer que ela é sempre fraca ou inexistente, pois as concepções
éticas dominantes tendem a gerar algum grau de comprometimento positivo de uma
pessoa com os seres humanos em geral.
[16]
Que pode ser caracterizado como uma arbitragem, como veremos a seguir.
[17] Santos, O discurso e o poder, p.
23.
[18]
Como veremos, nesse caso o terceiro não atuaria como juiz nem como árbitro, mas
como conciliador.
[19]
Utilizamos aqui o termo assistente como um gênero do qual fazem parte
tanto os conciliadores como os mediadores, que são os tipos de terceiros
imparciais em uma autocomposição assistida.
[20]
Vide Pires, Mediação e
Conciliação, p. 133.
[21]
Para um bom panorama da diversidade no uso dos termos mediação e conciliação,
vide Azevedo, Perspectivas metodológicas do processo de
mediação, nota 12, e Pires,
Mediação e Conciliação, pp. 133 e ss.
[22]
Sobre essa postura, vide Pires,
Mediação e Conciliação, p. 126.
[23]
Vide Cooley, A advocacia na
mediação, p. 26.
[24]
Esse modelo é chamado de tradicional-lineal por Marinés Suares [Suares, Mediación, p. 58],
[25]
Este modelo é minuciosamente descrito em Riskin, Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador: um
padrão para iniciantes, pp. 63 e ss.
[26]
Convém ressaltar que, embora Riskin considere que o mediador avaliativo pode
pressionar as partes para realizarem um acordo, defendo no texto a idéia de
que, ao pressionar a parte, o terceiro passa a atuar como negociador o como uma
nova parte, e não como um mediador.
[27] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação,
p. 9.
[28]
Marinés Suares identifica dois modelos que atuam nesse mesmo sentido, o transformativo
de Bush e Folger e o circular-narrativo de Sara Cobb. Porém, creio que
as diferenças existentes entre eles os caracterizam como variantes de uma
concentração no conflito e não como modelos que mereçam ser tratados
distintamente. [Suares, Mediación, pp. 59 e ss.],
[29]
Vide Azevedo, Perspectivas metodológicas do processo de
mediação.
[30] Warat, O ofício do mediador, p.
76.
[31] Winslade e Monk, Narrative mediation, p. XI.
[32]
Concepções essas tão incompreendidas por aqueles que tentam transformar o
direito em técnica racionalmente aplicável ou que compartilham a idéia de que
um estatuto epistemológico adequado somente pode ser conquistado por um saber
que seja purificado do desejo e do amor.
[33] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação,
p. 9.
[34] Warat, O ofício do mediador, p.
82.
[35] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação,
p. 16.
[36]
Convém ressaltar que a orientação acordista foi definida no final do ponto
anterior.
[37] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação,
p. 13.
[38] Warat, O ofício do mediador, p.
31.
[39] Warat, O ofício do mediador, p.
50.
[40]
Esse tipo de autoridade é própria dos modelos heterocompositivos, como veremos
a seguir.
[41] E
é bastante esclarecedor o fato de que a teoria processual utilize justamente a
idéia de substituição para caracterizar a função judicial.
[42]
Incrivelmente, nas sessões judiciais de conciliação, especialmente nos juizados
penais, muitas das partes não têm consciência de que elas podem simplesmente
negar-se a fazer o acordo.
[43]
Nesse ponto, cabe reconhecer a sensibilidade de alguns juízes que, percebendo
que o nível de conflitividade interna das pessoas envolvidas em um litígio é
muito grande, marcam a audiência de conciliação para uma data distante, para
que a pessoa tenha tempo de amadurecer seus desejos e recuperar a estabilidade
emocional. Porém, em casos que isso fosse necessário, provavelmente a
utilização de estratégias de mediação seria mais eficiente que o simples
decurso do tempo.
[44]
Como costuma afirmar Warat, as promessas de amor são feitas para não serem
cumpridas, pois, quando um amante solicita do outro que lhe prometa o amor
eterno, é porque normalmente o amor já deixou de existir. Nesse ponto, a
promessa não resolve nem transforma o conflito, apenas o encobre ou adia seu
afloramento.
[45] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação,
p. 18.
[46]
Em casos desse tipo, podemos encontrar tanto ações verdadeiramente comprometidas,
em que uma pessoa deseja preservar os interesses das outros por julgá-los
dignos de valor e respeito, quanto ações pseudo-comprometidas, em que há
um discurso de comprometimento, mas no qual a pessoa simplesmente calcula que
deve respeitar os desejos de terceiros para que eles não venham a prejudicar os
seus próprios. De um modo ou de outro, esses exemplos evidenciam que pode haver
uma dimensão estratégica forte tanto em uma quanto em outra figura, pois mesmo
o agir verdadeiramente comprometido envolve um cálculo de conseqüências para
que se possa respeitar os sentimentos de desejos das outras pessoas.
[47]
Autotutela que, no direito internacional, é feita por meio da imposição de
restrições unilaterais, tais como embargos ou imposição de barreiras
tarifárias, ou pela guerra.
[48]
Embora, como em qualquer relação de sinonímia, os significados não são
absolutamente idênticos e os termos não são absolutamente intercambiáveis.
[49]
Como observou Óscar Correas, a juridicidade é anterior às normas gerais e abstratas,
ou seja, os juízes antecederam as leis. As primeiras pessoas dotadas de
autoridade jurisdicional não estavam a serviço de um sistema de regras, mas
eram simplesmente chefes políticos ou pessoas com ascendência moral,
comprometidos a oferecer uma solução adequada e não a oferecer uma solução
conforme regras positivadas. Assim, é possível pensar a jurisdição
independentemente da legislação — embora essas funções estejam interligadas na
sociedade contemporânea. [Vide Correas,
Crítica da ideologia jurídica, p. 62]
[50] E
ressaltamos que réu é o nome genérico
dado àquele que é processado judicialmente, não sendo usado apenas para
designar quem é acusado de um crime.
[51]
Esse posicionamento é defendido, em especial, pelas as teorias vinculadas ao
realismo jurídico escandinavo e norte-americano. Sobre realismo jurídico, vide Costa, Introdução ao direito, pp.
286 e ss., Ross, Direito e
justiça, e Solon, Dever
jurídico e teoria realista do direito.
[52]
São excepcionais, por exemplo, as questões relativas à punição, nas quais
tipicamente é vedada a possibilidade de composição.
[53] O
que não é o caso, por exemplo, das mediações e conciliações efetuadas dentro da
estrutura do Poder Judiciário, especialmente nos juizados especiais, pois a
atuação do Estado precisa observar o princípio da publicidade, exceto em casos
especiais, como os que envolvem direito de família.
[54] O
Judiciário somente pode avaliar se a decisão foi tomada nos termos do
compromisso arbitral, mas não cabe ao juiz avaliar se a decisão foi a mais
adequada, pois isso representaria interferir no campo reservado à autonomia do
árbitro.
[55]
Embora seja permitida a arbitragem por eqüidade, trata-se de uma hipótese
excepcional.
[56] Warat, O ofício do mediador, p.
79.
[57]
Um aprofundamento maior dessa questão foi feito na análise do papel do
conciliador que, tal como o juiz, centra suas atenções no conflito e não no
litígio.
[58]
Convém ressaltar que, nesse texto, embora Boaventura oponha mediação e adjudicação
e não proponha qualquer diferença entre mediação e conciliação, ele
ressalta os aspectos estratégicos da negociação, o que aproxima o sentido desse
termo mais do conceito waratiano de conciliação que do de mediação.
[59] Santos, O discurso e o poder, p.
23.
Nenhum comentário:
Postar um comentário