10 de mar. de 2013

TGP - Cartografia dos métodos de composição de conflitos (Alexandre Araújo Costa)


I - Introdução: por uma nova cartografia

Conhecer é construir mapas e os registros cartográficos de territórios novos são quase sempre muito limitados[2]. E, embora possa parecer incrível para alguns, a resolução de conflitos é um campo novo para o direito, o que faz com que os mapas teóricos de que dispomos para lidar com essa questão ainda sejam demasiadamente inseguros. 

Embora o direito sempre tenha lidado com conflitos, faz muito pouco tempo que os juristas passaram a entender que esse é um objeto merecedor de reflexões específicas. A história do conhecimento é repleta de situações como essa: passamos séculos lidando com uma realidade que, pelos mais variados motivos, não é tematizada pelas nossas reflexões. A escravidão, a homossexualidade, a preservação ambiental, a liberdade de crença, o direito das mulheres a um tratamento igualitário, durante muito tempo esses temas simplesmente estiveram excluídos dos estudos sistemáticos que normalmente chamamos de ciência ou filosofia. Em um dado momento, esses fatos passaram a ser entendidos como problemas, ou seja, como fontes de indagações que merecem ser respondidas.

Para que um determinado objeto se transforme em um problema, é necessário que nos tornemos conscientes de que o modo tradicional de lidarmos com eles talvez não seja o mais adequado. Essa percepção de que algo poderia ser diferente em nossas visões em nosso comportamento costuma estimular, ao menos em algum, a busca de construir novos padrões teóricos e práticos para lidar com velhos fenômenos, vistos de forma renovada.

O conflito normalmente era visto pelos juristas como aquilo que deve ser combatido, pois uma das funções primordiais do direito é resolver os conflitos sociais.  Esses conflitos são inevitáveis, dado que a existência de divergências de interesses é inerente a uma sociedade formada por indivíduos autônomos. Porém, a única reação adequada ao conflito é busca de sua anulação, dado que a sociedade harmônica é aquela em que não há conflitos e tensões.

E como o direito pode anular os conflitos? A estratégia jurídica básica é a de estabelecer juízes, que decidem os conflitos mediante sua autoridade. Mas, em uma sociedade de homens iguais, os juízes não podem decidir de acordo com suas convicções pessoais, mas precisam aplicar padrões objetivos previamente fixados. Portanto, é preciso haver normas jurídicas que estabeleçam os padrões de julgamento.

Simplificada de maneira quase grosseira, essa é uma descrição do direito moderno e de sua articulação com o individualismo moderno: os indivíduos têm interesses pessoais, esses interesses entram em choque, esses choques devem ser anulados mediante a aplicação de regras previamente definidas e aplicadas por juízes imparciais.
Nessa visão de mundo, que papel pode ser reservado ao conflito? Nenhum, obviamente, a não ser o de vilão da história. Assim, como os gregos uniram todos os não-gregos no conceito de bárbaro, os europeus juntaram todos os povos ameríndios e africanos no conceito de primitivos e os juristas uniram todas as tensões que ameaçavam a paz social no conceito de conflito. Em todos esses casos, a generalidade do conceito simplesmente desconhece as imensas diferenças entre os objetos que os compõem, pois esses três conceitos servem para identificar simplesmente aquilo contra o que nos opomos, aquilo que deve ser recusado, dominado ou anulado.



Essa visão moderna está em crise, e, no campo dos conflitos, essa crise conduziu a uma percepção crescente de que há muitas coisas escondidas sob o nome genérico de conflitos. Tensões dos mais variados tipos e origens, com os mais variados modos de desenlace, exigindo estratégias as mais diversas para o seu enfrentamento. Essa primeira abertura gerou uma primeira onda de reflexão, na esteira da qual surgiu o movimento de resolução alternativa de disputas (RAD).
Porém, a própria noção de que é preciso valorizar métodos alternativos significa um reconhecimento que o modo jurisdicional é o mecanismo padrão de resolução, pois toda alternativa é alternativa a algum padrão. Além disso, o desenvolvimento dos métodos de RAD deu-se dentro da concepção de que o todo conflito é uma disputa de mais de uma pessoa acerca de um mesmo bem e que, por isso, pode ser resolvida a partir de um acordo. Esse primeiro momento resulta, portanto, em um reconhecimento dos limites da técnica jurídica de aplicação de normas gerais e de uma valorização das estratégias voltadas à criação autônoma de normas individuais para a resolução da disputa. As concepções resultantes desse momento, que ainda são dominantes, são o que podemos chamar de modelos centrados na solução de problemas (problem-solving models).
Porém, a identificação do conflito com a disputa acerca de um bem (ou de uma determinada combinação de bens) é uma concepção demasiadamente restrita da dimensão conflituosa da vida em sociedade. E a insistência no acordo como forma única de resolução de conflitos é demasiadamente ligada à noção de que os conflitos são aquilo que se precisa anular na sociedade. Com o tempo, desenvolveu-se uma percepção mais crítica acerca das peculiaridades dos conflitos e da possibilidade de resolvê-los mediante acordos.
Uma das percepções fundamentais é a de que a disputa não é o conflito, mas uma decorrência do conflito. Portanto, resolver a disputa não põe fim ao conflito subjacente. Quando um juiz determina com quem ficará a guarda de um filho, isso põe fim a uma determinada disputa (ou litígio, como definiremos a seguir), mas, além de não resolver a relação conflituosa, muitas vezes acirra o próprio conflito, criando novas dificuldades para os pais e para os filhos. Então, torna-se claro que o conflito, ao menos em muitos casos, não pode ser resolvido pelo acordo.
Mais profunda que essa mudança é a percepção de que o conflito talvez não seja algo a ser anulado, mas que as relações humanas têm uma dimensão conflitiva que as integra. As tensões não são frutos simplesmente de interesses divergentes (ou seja, de desejos diferentes que podem ser avaliados dentro de uma mesma visão de mundo), mas de diferentes maneiras de perceber o mundo. Essas diferenças não podem ser reduzidas sem violentar o direito de cada um à sua própria identidade.
Esse direito à diferença é um dos elementos que está na base das novas teorias sobre o conflito. Antes, a diferença era vista como algo ruim, ou admissível apenas dentro de certos limites predeterminados, que tendiam a reduzir a diferença imediata a uma igualdade mediata. Por exemplo: duas pessoas envolvidas em um acidente de carro desejam coisas imediatamente diferentes, pois nenhuma quer arcar com os danos. Mas ambas desejam o mesmo: ser indenizadas pelo prejuízo que sofreram. Assim, muitas vezes queremos coisas diferentes porque, no fundo, queremos a mesma coisa. Somente nessas situações faz sentido a estratégia normativa de estabelecer critérios sobre quem tem razão em desejar a mesma coisa (uma indenização, a propriedade de um bem, a guarda de um filho, etc.).
Em outras palavras, a diferença somente era admissível no tocante à disputa, mas não no tocante ao conflito. Mas o que fazer quando o conflito não é uma disputa por um determinado bem, mas o resultado de uma percepção diferente do mundo? Que fazer quando se confrontam um marido que repete padrões patriarcais e uma mulher que o ama, mas tenta conquistar sua liberdade e autonomia? Ou quando desejamos aquilo que não é quantificável, como atenção, carinho ou um pedido de desculpas? Ou aquilo que nenhum acordo é capaz de criar, por envolver respeito, afeto, cuidado ou qualquer coisa que envolva um sentimento sincero? Nessas situações, os modelos de disputa falham, justamente porque há conflito sem haver propriamente disputa. O que está em jogo são desejos inconciliáveis por serem divergentes e não por convergirem em relação a um bem disputado.
Outra mudança fundamental foi a incorporação de certas tendências existentes na filosofia desde meados do século XX, passando-se a reconhecer que a linguagem não é apenas um instrumento para a realização de acordos de interesses[3]. Como sintetizou Dora Schnitman, “la función primaria del lenguaje es la construcción de mundos humanos, no simplemente la transmisión de mensajes de un lugar a otro. La comunicación se torna así un proceso constructivo, no un mero carril conductor de mensajes o de ideas”[4].
Com isso, a linguagem deixa de ser vista como um instrumento para negociar a resolução disputas (visão inerente à primeira onda dos métodos RAD), pois se passa a reconhecer que os próprios conflitos têm uma dimensão lingüística, no sentido de que eles são constituídos pela nossa percepção das relações vividas, que são reconstruídas lingüisticamente dentro de uma narrativa pessoal. Nessa medida, alterar a percepção que uma pessoa tem do conflito significa modifica o próprio conflito, pois é possível modificar o modo de comportamento entre as pessoas nele envolvidas.
Passou-se, então, a pensar na intervenção na própria estrutura do conflito, alterando a dimensão simbólica da relação conflituosa (ou seja, alterando o modo como as pessoas percebem os fatos que elas qualificam como conflituosos) e, conseqüentemente, abrindo novas portas para a transformação dessa relação. Como elaboramos lingüisticamente a própria realidade (ou, ao menos a linguagem é um elemento importante na percepção do que chamamos de realidade), é possível intervir na própria maneira como pensamos o nosso conflito. Ora, como um conflito não existe fora da percepção (ainda que inconsciente) das pessoas, intervir na elaboração simbólica do conflito significa promover a transformação do conflito em si (e não apenas nos seus resultados ou conseqüências).
Esse conjunto de percepções conduz à valorização da mediação como elemento de transformação das relações sociais (como em Warat, Bush e Folger)[5] e ao reconhecimento do aspecto lingüístico e simbólico das relações (como em Winslade, Monk e também em Warat[6]).
Cada uma dessas teorias oferece um mapa diferente do terreno da resolução de conflitos. Algumas estruturas permanecem um pouco alheias às movimentações contemporâneas (a arbitragem, por exemplo, não sofre grandes alterações conceituais), mas outras estão sendo constantemente mapeadas por cartógrafos que fornecem os mapas mais diferentes (especialmente a mediação). Por tudo isso, alguém que inicia o estudo do tema pode sentir-se bastante perdido, já que os livros vão apresentar, muitas vezes como verdades incontestadas, definições as mais diversas de palavras como conflito, disputa, mediação, conciliação e outras.
Por esse motivo, é inevitável fazer um estudo dos vários mapas disponíveis e creio ser conveniente traçar um mapa geral, que tente organizar as várias teorias como mapeamentos parciais, dando um sentido global ao tema da resolução de conflitos. Para usar uma terminologia mais arcaica e pretensiosa, convém elaborar uma teoria geral do conflito.
O objetivo deste artigo é delinear um mapa geral dos conflitos, a partir de uma perspectiva jurídica. O resultado é certamente ainda muito lacunoso, como todo mapa de um terreno inóspito, cujas fronteiras são controvertidas e no qual vários grupos lutam por conquistar hegemonia. Mas creio que a atividade do teórico não pode ser outra coisa senão esta (re)elaboração de mapas provisórios, que não se pretendem confundir com o real[7], mas que sabem não passar de uma orientação para que os homens possam pensar e agir em suas relações uns com os outros.

II - Reconhecimento do terreno: avaliando as diferenças entre os conflitos

A afirmação de que o direito atua sobre os conflitos sociais talvez possa ser acolhida unanimemente pelos juristas, especialmente porque ela é tão vaga que cada um poderia atribuir aos termos direito, conflito e social qualquer sentido que lhe aprouvesse. De toda forma, por mais que haja debates acerca da função específica do direito, parece claro que ele lida com a conflituosidade social, o que indica ser conveniente pensarmos um pouco mais a fundo sobre os conflitos e os mecanismos de que dispomos para enfrentá-los, para que possamos mapear devidamente esse terreno.
Tomemos o exemplo de Capitu e Bentinho, um casal de companheiros que, após anos de convívio, decidiu separar-se, situação em que é preciso enfrentar o problema da divisão dos bens que compunham o seu patrimônio. Nesse caso, pode ser que ambos estejam de acordo sobre qual seria a divisão mais justa — caso em que não ocorreria conflito específico sobre este tema —, mas também pode ser que haja divergência acerca da divisão dos bens.

A - Agir estratégico-indiferente e agir comprometido

Havendo divergência, espera-se normalmente que ambos conversem, mostrem os seus pontos de vista e, respeitando as divergências de posicionamento, busquem uma saída consensual. Trata-se este caso de uma tentativa de autocomposição, na medida em que as decisões acerca do conflito são tomadas pelas próprias partes interessadas.
Quando existe uma contraposição de interesses, ela muitas vezes é resolvida pelas partes mediante um processo de busca de uma decisão consensual, na qual cada envolvido tenta mudar a opinião do outro ou abre mão de parte de suas pretensões, na busca de alcançar um equilíbrio de perdas e ganhos que seja minimamente satisfatório para ambos.
No caso da separação, por exemplo, pode ser que um dos companheiros abra mão de certos discos e da mesa de jantar, enquanto o outro abre mão de alguns livros e da estante da sala, na busca de encontrar uma solução consensual. Observe-se que não é só a divisão patrimonial que precisa ser definida nesses casos, pois os ex-companheiros também podem decidir conjuntamente vários outros pontos, como definir a versão dos fatos que será exposta para as famílias e para os amigos, ou comprometer-se a não freqüentar certos restaurantes ou cinemas, com o fim de evitar encontros que seriam desagradáveis para algum deles.
Nesse ponto, é bastante típico que o jurista reduza a autocomposição a uma negociação de interesses contrapostos, a partir de um comportamento estratégico, no qual cada uma das partes envolvidas busca maximizar os seus próprios interesses, não estando diretamente comprometido com a satisfação (nem com a contrariedade) do interesse dos outros. Esse tipo de redução trabalha com um modelo individualista de matriz utilitarista, no qual se considera que todo indivíduo tende a fazer opções racionais no sentido de obter para si, em cada caso concreto, o máximo de prazer e o mínimo de dor.
De acordo com tal perspectiva, se uma das partes pensa na satisfação da outra, não é por estar comprometido com ela, mas apenas porque um agente racional precisaria levar em consideração que ela tenderá a aceitar a proposta que lhe for mais vantajosa[8]. Nesse tipo de modelo, que está na base tanto da teoria econômica clássica como da teoria dos jogos tradicional, tende-se a encarar os envolvidos no conflito como adversários e pressupõe-se que cada parte tem um compromisso apenas com a realização dos seus próprios interesses.
Essa perspectiva, que reduz o comportamento a um agir estratégico-indiferente aos interesses dos terceiros envolvidos, é bastante razoável para a análise de muitos dos conflitos juridicamente relevantes, pois há uma infinidade de casos em que as partes são efetivamente adversários em um conflito que pode ser reduzido a um jogo de interesses no qual cada envolvido busca maximizar seus ganhos. Nesses casos, pode-se qualificar os conflitos como adversariais, o que ocorre tipicamente nos casos de batida de carros entre motoristas que não se conhecem, de bancos que buscam cobrar dívidas vencidas, de seguradoras que buscam enquadrar uma determinada situação em uma das hipóteses que as exime de ressarcir o segurado. Em nenhuma dessas hipóteses parecer haver muito mais que um agir estratégico praticado por pessoas que se entendem como adversárias, pois cada uma busca maximizar seus interesses e o ganho de uma implica quase sempre uma perda para a outra.
Porém, reduzir todos os conflitos a esse modelo seria um exagero, pois há também uma variedade de casos em que uma das partes tem, sim, interesse na satisfação dos interesses da outra. Não se trata de satisfazer parcialmente os interesses de um terceiro como uma forma de maximizar o seu interesse individual, mas de considerar o respeito aos desejos do outro como um objetivo autônomo. Nesse caso, o modelo ideal não seria o de dois adversários que buscassem maximizar seus interesses particulares, ainda que em detrimento do outro, mas de duas pessoas que buscassem criar uma situação que seja a mais justa, maximizando o bem comum e não apenas os seus interesses particulares.
Poderíamos aqui falar de um agir comprometido, pois a satisfação dos interesses do outro mostra-se como um dos objetivos relevantes das partes. Com isso, o ganho de uma parte deixa de implicar uma perda para a outra, que não é vista como um adversário, dado que as pessoas envolvidas têm efetivo interesse em satisfazer os interesses do outro e não apenas os seus próprios. Talvez Capitu e Bentinho já não mais encontrassem satisfação na vida em comum, mas continuassem partilhando uma grande amizade, ou respeito, ou qualquer sentimento que os fizesse ter interesse na felicidade do outro.
Cabe ressalvar que moderna a teoria dos jogos também conta com modelos capazes de lidar com situações que não são necessariamente adversariais e buscam identificar soluções de maximização dos ganhos para todas as partes envolvidas, tal como a idéia do equilibrium de Nash[9]. De toda forma, mesmo esses modelos de maximização de ganhos para o conjunto dos interessados não ultrapassam os limites de um pensamento estratégico-indiferente aos interesses do outro, pois reduzem todos os interesses envolvidos a interesses individuais (ainda que seja no interesse individual de satisfazer o outro) e, em tais modelos, o respeito aos interesses de terceiros é entendido um meio para se tentar garantir ao máximo os interesses individuais[10].
Assim, caracterizamos o agir comprometimento pelo fato de que o outro é percebido como uma pessoa cujos desejos não nos são indiferentes. Porém, não existe apenas o que poderíamos chamar de um comprometimento positivo (voltado à satisfação do terceiro), mas também há um comprometimento que poderíamos qualificar como negativo, pois ele é voltado para dificultar a satisfação, ou mesmo causar sofrimento, ao outro. Por exemplo, talvez as dificuldades de convivência entre Capitu e Bentinho poderiam ter degenerado para um rancor tão grande que um estivesse comprometido com causar sofrimento ao outro. Assim, o comprometimento emocional pode fazer tanto que uma pessoa atue de forma colaborativa ou cooperativa, quanto de forma que não é apenas adversarial, mas destrutiva[11], na medida em que uma das partes busca impedir que o outro alcance seus interesses. De um modo ou de outro, o comprometimento insere no conflito uma dimensão afetiva que é deixada de lado por um modelo descritivo meramente estratégico, pois a felicidade ou o sofrimento do outro não é indiferente para as partes em conflito.
As relações humanas, contudo, não podem ser divididas binariamente em comportamentos indiferentes e comprometidos, pois raramente alguém é abnegado o suficiente para não pensar no seu bem-estar próprio[12] nem é individualista ao ponto de não ter qualquer compromisso com os sentimentos das outras pessoas. Há vários graus de comprometimento, ou seja, as pessoas estão dispostas a abrir mão de alguns de seus interesses pessoais perante determinados interesses de terceiros, mas apenas até um certo nível, que varia de acordo com as partes em conflito, os interesses contrapostos, os valores éticos e ideológicos envolvidos, etc.
E, para tornar ainda mais complexa a análise, devemos admitir que há casos em que satisfazer o interesse do outro pode ser relevante de um ponto de vista estratégico (pense-se, por exemplo, em uma sociedade comercial que pretende garantir a fidelidade e a satisfação de seus clientes), o que geraria um agir estratégico que teria características exteriores muito semelhantes (talvez indistinguíveis) aos de um agir comprometido. Para designar esses casos, talvez fosse útil a expressão de um agir pseudo-comprometido, em oposição a um agir eticamente comprometido, pois ele adotaria todo o discurso do agir comprometido sem que houvesse efetivamente um respeito pela pessoa do outro: apesar da tentativa de satisfação do cliente, a felicidade dele não passaria de um objeto de avaliação estratégica.[13]
Apesar de reconhecermos que a distinção entre os tipos ideais agir estratégico-indiferente e agir comprometido implica uma grande redução, acreditamos que ela oferece um bom alicerce base para a construção de um modelo adequado e que é útil para evidenciar algumas peculiaridades dos conflitos, especialmente na distinção entre as espécies de autocomposição.

B - Relações unidimensionais e multidimensionais

Porém, antes de passar ao estudo das formas de autocomposição, convém explorar as relações entre a diferenciação dos conceitos de agir meramente estratégico e comprometido e a distinção entre relações unidimensionais (ou de vínculo único), nas quais as pessoas envolvidas estão ligadas por interesses pontuais, e relações multidimensionais (ou de múltiplos vínculos, para utilizar a linguagem de Boaventura de Souza Santos[14]), em que as pessoas são ligadas, entre si e com a comunidade circundante, por vários interesses e valores inter-relacionados, tal é tipicamente o caso nas relações familiares, de vizinhança, de trabalho e de amizade ou companheirismo.
É diferente deixar de pagar uma dívida frente a um banco e deixar de pagar uma dívida a um irmão ou colega de trabalho, pois essa inadimplência gera implicações que escapam a questão da dívida e passam a invadir outras dimensões da vida das pessoas: o modo como ele é percebido pelos companheiros e parentes, seu status social, sua auto-percepção como pessoa, etc. Também é diferente cobrar a dívida de um estranho e cobrar a dívida de um parente ou colega em dificuldades financeiras, pois, na visão do meio social circundante, o dever jurídico possivelmente seria mitigado por outros valores sociais, como caridade e solidariedade. Por exemplo, cobrar na justiça uma dívida conflituosa poderia gerar conflitos nas relações com um irmão ou um colega de turma.
As relações multidimensionais tendem a possuir um forte componente emotivo, pois as relações sociais são envoltas de valores (morais, religiosos, ideológicos, etc.) que geram uma forte dimensão emotiva a conflitos que sejam gerados dentro delas. Nessa medida, o seu enfrentamento tipicamente envolve um agir comprometido, em maior ou menor grau, dependendo do caso. Além disso, essas relações são tipicamente continuadas, de forma que a resolução de um conflito não encerra a convivência entre as partes e, portanto, é sempre necessário pensar nas tensões futuras que poderiam nascer de uma abordagem excessivamente egoística das divergências.
Já as relações de vínculo único tendem a ter uma dimensão emocional menos acentuada[15], o que facilita a redução do comportamento a um agir meramente estratégico. Além disso, essas relações são muitas vezes pontuais no tempo, pois, encerrada a relação ou o conflito que nela surja, não há uma perspectiva de convivência futura. Por exemplo, paga a dívida resultante de um acidente de trânsito sem vítimas, as partes envolvidas no sinistro normalmente não vêm a ter qualquer convivência futura e os resultados do comportamento delas dificilmente teriam forte impacto nas suas outras relações sociais.

C - Conflito e litígio

Suponha que Capitu e Bentinho não conseguiram chegar a um acordo sobre a divisão dos bens e decidissem transferir a um amigo comum o poder de dividir o patrimônio de uma maneira que ele julgasse adequada. Nesse caso[16], o casal não estaria submetendo ao amigo a solução de todo o conflito, mas apenas de uma pequena parcela dele, sendo que essa parcela pode ser resolvida a partir do estabelecimento de uma norma específica. Assim, o amigo foi chamado a editar uma norma que estabelecesse uma determinada divisão de bens, que o casal comprometeu-se a aceitar como uma regra obrigatória.
Observe-se que o amigo não foi chamado para ajudar a resolver as várias dimensões do conflito, mas para resolver uma questão específica que aflorou em um campo complexo de conflituosidade, e que a autoridade do amigo limita-se a resolver um problema pontual. Dessa forma o amigo não interveio no conflito como um todo, mas apenas resolveu um litígio, ou seja, uma determinada faceta do conflito, uma disputa sobre um bem determinado que pode ser solucionada por meio de uma decisão normativa.
Por isso, resolver o litígio (ou a disputa) não significa resolver o conflito que lhe deu origem, sendo que, muitas vezes, a heterocomposição do litígio pode gerar novos conflitos ou acirrar o nível existente de conflituosidade. Se, por exemplo, o amigo comum tomasse uma decisão que desagradasse profundamente tanto a Capitu quanto a Bentinho, a decisão do litígio terminaria por criar conflitos e não por resolvê-los.
Se, ainda dentro da hipótese proposta, o amigo não aceitasse a ingrata tarefa que lhe foi solicitada e Capitu decidisse levar Bentinho à justiça, ela não poderia simplesmente dirigir ao juiz um pedido genérico, tal como: ajude-nos a que nos separemos de uma maneira que não nos degrade e que faça jus ao amor que tínhamos. Judicialmente, esse pedido seria entendido simplesmente como nonsense, pois o judiciário não lida com toda a complexidade do conflito, mas apenas com litígios determinados. Para utilizar os conceitos de Boaventura de Sousa Santos[17], existe um conflito real e um conflito processado (que chamamos aqui de litígio).
Assim, para ingressar em juízo, Capitu precisaria definir o litígio que ela desejaria que o juiz resolvesse, solicitando que fosse feita uma determinada divisão de bens, que fosse concedida uma pensão alimentícia, que Bentinho fosse proibido de freqüentar certos lugares, ou qualquer outra coisa que desejasse. E ao juiz caberia simplesmente analisar se o pedido feito por Capitu teria ou não base no direito positivo e, com base nesse critério, deferi-lo ou não. Dessa forma, o pedido do autor define o litígio e este determina o limite da autoridade judicial sobre o caso.
Porém, também é possível falar de litígios dentro de conflitos em que um terceiro não seja chamado a decidir um problema. Se, por exemplo, Capitu e Bentinho selecionarem, dentro de sua relação conflituosa, determinados pontos que elas desejam ver resolvidos normativamente, eles tanto podem negociar estes pontos específicos, em uma composição direta, como podem chamar um terceiro para auxiliá-los a chegar a uma acordo, e não para que ele decida o litígio[18].
De toda forma, é preciso não confundir o conflito com o litígio, pois, embora todo litígio esteja ligado a um conflito, ele não representa toda complexidade do conflito que lhe é subjacente, mas uma determinada faceta sua, a qual pode ser decidida por meio do estabelecimento de uma norma, seja esta regra imposta por um terceiro (juiz ou árbitro), seja ela fruto de um acordo direto ou assistido.

III - Mapeando as estratégias autocompositivas

A - Autocomposição direta

Chamamos de autocomposição direta o modo de enfrentamento de conflitos no qual as partes envolvidas buscam o consenso sem que haja a intervenção de um terceiro imparcial. Quando há intervenção de um terceiro imparcial (ou seja, de alguém que não está vinculado à defesa dos interesses de nenhuma das partes), passamos ao campo da autocomposição mediada, que será trabalhada no próximo ponto.
Nos casos de autocomposição direta em que não há uma dimensão emocional envolvida (como uma divergência sobre os juros incidentes sobre um empréstimo bancário), trabalha-se tipicamente com o agir indiferente e, portanto, o enfrentamento do conflito dá-se por meio de uma negociação de interesses, em que cada parte somente cede em suas pretensões caso julgue que o consenso gerado lhe seria mais vantajoso. Nessas hipóteses, falamos normalmente de negociação ou transação, denominações que acentuam o fato de tratar-se de um jogo estratégico no qual o consenso é atingido ao custo de concessões mútuas.
Na negociação, é possível a intervenção de um terceiro (o negociador), mas este não é imparcial, pois a sua função será defender os interesses de alguma (ou algumas) das partes envolvidas. Esse é um papel constantemente desempenhado por advogados, que muitas vezes representam (ou ao menos assessoram) seus clientes em negociações que visam a resolver conflitos.
Possivelmente não fazem parte do senso comum conceitos específicos para tratar da autocomposição comprometida porque os casos de comprometimento positivo tendem a gerar um consenso sem a necessidade de intervenção de terceiros e os casos de comprometimento negativo tendem a gerar conflitos cujo enfrentamento adequado normalmente exige a intervenção de terceiros, escapando, assim, do âmbito da autocomposição direta. De toda forma, essa distinção parece útil para definir mais precisamente o campo da negociação (em que ganhariam relevância as abordagens meramente estratégicas, especialmente a teoria dos jogos) e para distinguir os vários modos de autocomposição mediada.

B - Autotutela

Antes de passar para a análise da autocomposição mediada, cabe tecer algumas considerações sobre uma outra forma de enfrentamento de conflitos, que ocorre quando uma das partes, em vez de buscar uma composição do conflito por meio do diálogo, utilizam-se de sua própria força para fazerem valer os interesses que ela considera legítimos. Nesses casos, como não há a busca de uma composição das partes conflitantes, mas uma ação unilateral em que uma das partes tenta garantir o que entende como o seu direito, falamos de autotutela e não de autocomposição.
Este seria o caso, por exemplo, se Capitu considerasse que seu gosto especial pela música lhe dava direito a ficar os discos que foram do casal e, prevendo que Bentinho não aceitaria essa proposta, em vez de negociar com o ex-companheiro, ela simplesmente se apossasse de todos os discos. A autotutela, portanto, não é uma conduta que privilegia o diálogo, mas trata-se de uma imposição unilateral dos interesses de um sobre os do outro. Porém, para que se caracterize propriamente como autotutela, é preciso que a parte entenda que está atuando na defesa de um direito, e não simplesmente na defesa de um interesse pessoal.
Esse comportamento é visto com muitas reservas, havendo inclusive um crime, chamado de exercício arbitrário das próprias razões, que submete a pena de prisão quem faz justiça pelas próprias mãos. Porém, há casos em que é reconhecido o direito à autotutela, como ocorre na legítima defesa, que é a permissão de que a uma pessoa ameaçada de dano iminente defenda seus interesses legalmente protegidos (ou seja, seus direitos) com os meios disponíveis. De toda forma, ainda que a nossa sociedade acolha a autotutela em certos casos, ela é considerada uma medida excepcional, que somente se justifica no caso de ser a única saída possível para garantir um interesse legítimo.

C - Autocomposição assistida

A autocomposição assistida é aquela em que há a intervenção de um terceiro imparcial, ou seja, de uma pessoa que não está envolvida diretamente no conflito nem representa os interesses de alguma das partes envolvidas. Esse terceiro imparcial pode ser conhecido das partes, pode inclusive ter uma relação afetiva com elas (uma mãe, por exemplo, pode mediar um conflito entre os filhos), mas seria inadequado que um processo de autocomposição assistida fosse orientado por um terceiro com interesse pessoal em uma das alternativas possíveis, pois, em vez de auxiliar as partes a chegarem ao consenso ou a uma situação de equilíbrio, o terceiro poderia direcionar o acordo tendo em vista seus próprios interesses.
É claro que a neutralidade absoluta não existe e que o terceiro imparcial tem valores pessoais que certamente influirão na sua atividade, por mais que ele se esforce para agir de modo neutro. Porém, quando ele passa a defender os seus próprios interesses, ainda que de forma velada ou até mesmo inconsciente, ele deixa de ser um terceiro e passa a ser uma parte do próprio conflito, o que faz com que o processo tenha apenas a aparência de autocomposição assistida. Uma mãe que, a pretexto de mediar um conflito entre seus filhos, pressiona um deles para aceitar uma proposta feita pelo outro, pode até propiciar a realização de um acordo, mas não terá atuado como assistente[19]: ela se transformaria em parte, eventualmente em negociadora, mas não poderia ser qualificada como um terceiro imparcial.
Ressalte-se que a imparcialidade do terceiro não é uma exigência lógica, mas ética, somente fazendo sentido dentro de uma perspectiva que valorize a subjetividade das pessoas e que considera legítimo apenas o acordo que é realizado por uma vontade livremente expressada, o que implica a ausência de pressões externas, como ameaças, subornos ou pressões. Nessa medida, exige-se do assistente que sirva como um facilitador do acordo ou do equilíbrio e não como um defensor de determinado interesse, ainda que seja dos valores que ele considera justos. Esse respeito pela liberdade das partes e por sua autonomia está no centro das preocupações com a autocomposição assistida, pois a linha que separa a parcialidade da imparcialidade pode ser muito tênue, especialmente nos casos em que o terceiro adota uma postura mais ativa.
Por fim, cabe ressaltar que, em alguns casos, é obrigatório que as partes submetam-se a um processo autocompositivo assistido, como acontece nos juizados especiais cíveis. Nesses órgãos do Poder Judiciário, o processo é dividido em duas partes: uma etapa necessária de conciliação e uma etapa jurisdicional, que ocorre apenas quando a autocomposição é infrutífera. Existe, assim, uma audiência de conciliação, na qual um conciliador (função gratuita que pode ser exercida por qualquer pessoa que tenha uma qualificação mínima) tenta conduzir as partes à realização de um acordo, e somente quando as tentativas de conciliação são frustradas, o processo vai a um juiz, para que ele tome uma decisão a ser imposta às partes. De toda forma, embora seja obrigatória a participação no processo, as partes não podem ser obrigadas a chegarem a um acordo e o conciliador não pode impor-lhes qualquer decisão, motivo pelo qual esse método continua sendo autocompositivo.

IV - Entre mediação e conciliação

Conciliação e mediação são dois termos que sempre são utilizados nas teorias que tratam dos métodos de enfrentamento de conflitos que aqui chamamos de autocomposição mediada. A palavra mediação acentua o fato de que a autocomposição não é direta, mas que existe um terceiro que fica “no meio” das partes conflitantes e que atua de forma imparcial. A palavra conciliação acentua o objetivo típico desse terceiro, que busca promover o diálogo e o consenso. Assim, para o senso comum, não pareceria estranha a idéia de que o mediador tem como objetivo promover a conciliação, havendo mesmo muitos autores tanto brasileiros como estrangeiros que tratam esses termos como sinônimos[20]. Porém, na tentativa de acentuar as diferenças existentes entre as várias possibilidades de autocomposição mediada, são vários os autores que buscam diferenciar conciliação de mediação, ligando significados diversos a esses termos.[21]
Nessa busca, dois são os grandes critérios em torno dos quais giram as tentativas de classificação: o modo de atuação do terceiro imparcial e o tipo de conflito envolvido. Assim, os autores que se concentram no primeiro critério tendem a considerar que o mediador atua simplesmente como facilitador nas negociações, enquanto o conciliador adota uma postura mais ativa, podendo inclusive propor alternativas[22] ou exatamente o contrário, afirmando que o papel do conciliador limita-se a induzir as partes a “envolver-se ativamente na resolução do problema”[23]. Já os teóricos que se concentram no segundo critério tendem a afirmar que a mediação está ligada a conflitos mais amplos (que chamamos neste trabalho de multidimensionais ou de múltiplos vínculos), enquanto a conciliação está ligada a conflitos mais restritos (que chamamos de unidimensionais ou de vínculo único).
Embora essas distinções sejam aparentemente coerentes entre si, não é possível harmonizá-las, pois um terceiro que atuasse como facilitador em conflitos restritos seria considerado por uns como mediador e por outros como conciliador. Essa incompatibilidade é fruto da opção dicotômica, em que se oferecem opções binárias (ou se é um conciliador ou se é um mediador) com base em critérios diferentes.

A - A mediação centrada no acordo[24]

Para tentar superar essa dificuldade, o norte-americano Leonard Riskin propôs a substituição do modelo binário por um modelo graduado e tentou harmonizar os dois critérios, na tentativa de desenvolver uma teoria que englobasse todos os aspectos do problema[25]. Todavia, com esse passo, Riskin não poderia manter a distinção entre mediação e conciliação, pois precisava tratar todas as estratégias possíveis como espécies de um mesmo gênero, tendo ele optado por manter a mediação como gênero e descrever as suas possibilidades de variação.
Para englobar as duas variáveis em um mesmo modelo, Riskin propôs que se construísse um gráfico cartesiano em que um eixo representasse a amplitude dos problemas a serem resolvidos e o outro o nível de intervenção do mediador. A amplitude do problema, que poderíamos designar como amplitude do litígio, varia de questões pontuais (ex: definição de uma indenização), passa por questões mais complexas (ex: interesses comerciais e profissionais dos envolvidos), até atingir as implicações sociais do conflito (ex: interesses comunitários envolvidos). Já o papel do mediador varia de um mero facilitador (que não poderia sequer sugerir propostas de acordo), passaria por uma etapa intermediária (em que ele pode até sugerir propostas, mas não pode oferecer sua visão pessoal), até chegar ao ponto oposto, do mediador avaliativo, que não apenas teria a possibilidade de dar a sua opinião, mas poderia até chegar ao ponto de pressionar as partes a celebrar um acordo, se tivesse meios de pressão para tanto[26]. Entendendo que os eixos se cruzam nos pontos médios entre essas características, o gráfico ficaria dividido em quatro campos, que Riskin identifica como representando as quatro linhas básicas de orientação do mediador:
1.   facilitador-restrito, que apenas orienta as partes em questões pontuais, (ex: um conciliador que, mediante perguntas, ajuda as partes envolvidas em uma batida de trânsito a compreenderem adequadamente os argumentos colocados e suas implicações),
2.   facilitador-amplo, que orienta as partes em questões mais profundas, mas deve abster-se de qualquer manifestação que implique uma avaliação do problema (ex: um mediador que tenta ajudar Capitu e Bentinho a compreenderem melhor os seus próprios interesses e as implicações futuras da aceitação das propostas que um dirige ao outro),
3.   avaliador-restrito, que deve estimular as partes a tomar decisões em questões de baixa complexidade (ex: um conciliador de um juizado especial que diz a um dos envolvidos em uma batida de trânsito que os juízes normalmente decidem casos daquele tipo do modo como a outra parte sugeriu),
4.   avaliador-amplo, que poderia chegar ao ponto de pressionar as partes a fecharem um acordo (ex: um juiz que diz a Bentinho que a proposta feita por Capitu é tão boa que dificilmente se encontraria uma saída mais justa).
Com esse modelo, Riskin oferece uma saída abrangente, pois constrói um sistema em que relaciona as variáveis que outras propostas tendem a tratar de forma isolada. Porém, creio essa saída não equaciona devidamente o problema, pois termina-se por substituir os problemas inerentes a dicotomias rígidas pelos problemas de uma falsa gradação. O pressuposto do modelo de Riskin é o de que é possível diferenciar os conflitos a partir de gradações, o que implicaria que a diferença entre eles não reside em critérios qualitativos, mas na quantidade de determinados elementos, quais sejam, a amplitude do problema e a postura avaliativa do mediador. Conseqüentemente, se a diferença é meramente quantitativa, o modelo ergue-se sobre o pressuposto de que os conflitos têm um substrato comum e que o objetivo do mediador é sempre o mesmo, mudando apenas a complexidade do primeiro e a interventividade do segundo.
Esse fato indica que Riskin compartilha do que Warat chama de uma orientação acordista da mediação, que entende o conflito como um problema resolvido pelo acordo e que considera, portanto, que a função única da mediação é construir uma solução consensual para por fim ao conflito[27]. Na base dessa concepção, identifica-se a teoria individualista clássica, que pensa a sociedade como um conjunto de indivíduos que age estrategicamente na busca de satisfazer os seus interesses individuais, motivo pelo qual seria possível diferenciar os conflitos apenas pela amplitude da divergência a ser resolvida. Dentro dessa concepção, para a qual a mediação oferece a oportunidade de proporcionar uma satisfação conjunta a todos os disputantes de um conflito, Riskin desenvolveu um modelo que supera alguns limites das teorias anteriores, mas incide nos próprios limites da visão acordista.
E o principal desses limites é uma indiferenciação ente conflitos ligados a um agir meramente estratégico e conflitos ligados a um agir comprometido, elementos cuja diferença é qualitativa e não quantitativa, o que inviabiliza a sua inclusão em gráficos baseados na variação constante de um elemento comum subjacente a todos os objetos abrangidos pelo sistema. Nessa medida, por mais que devamos reconhecer a engenhosidade do modelo, julgo que o fato de Riskin não reconhecer uma diferença qualitativa entre os conflitos faz com que ele não possibilite enfrentar adequadamente a complexidade da mediação.
Por tudo isso, parece-me mais adequado reconhecer que o modelo de Riskin explica bem os conflitos que têm dimensão emocional mais restrita, que envolvem uma contraposição de adversários que agem estrategicamente e que exigem a intervenção do terceiro para catalisar um acordo, pois a sua função é a resolução do litígio e não na transformação do conflito. Nessa medida, a teoria de Riskin restringir-se-ia basicamente ao que Warat chama de conciliação, conceito que ele diferencia do de mediação, em uma tentativa de construir uma teoria da autocomposição que transcenda os limites do modelo acordista.

B - A mediação centrada no conflito[28]

1. A orientação transformadora

Para Warat, a diferença primordial entre conciliação e mediação está no tipo de conflito a ser enfrentado, sendo que essa distinção tem reflexos diretos no papel a ser desempenhado pelos mediadores e conciliadores. Outros autores essas duas categorias como tipos distintos de mediação e, como fazem Bush, Folger, dividem a mediação em transformadora (transformative mediation) e resolutiva de problemas (problem solving mediation)[29]. Porém, prefiro a distinção proposta por Warat, tanto por considerá-la mais elegante (as escolha das terminologias é sempre influenciada por nosso senso estético) como por tratar devidamente um conceito já está consolidado na experiência jurídica brasileira: a conciliação. Como a conciliação é ligada normalmente ao trabalho dos juizados especiais e dos juízes, cuja função primordial (devida ou indevidamente) é estimular o acordo, creio que essa distinção conceitual é a mais compatível com o uso normal da palavra.
De acordo com Warat, a mediação relaciona-se a conflitos com uma forte dimensão emocional e que envolvem um agir eticamente comprometido, enquanto a conciliação aborda conflitos com dimensão afetiva anêmica ou inexistente e envolve um agir estratégico-indiferente. Com isso, a função da mediação é de intervir basicamente no aspecto emocional, buscando transformar uma relação conflituosa em uma relação saudável, auxiliando as partes a compreender o conflito de forma mais aprofundada (o que implica compreender os seus próprios desejos e interesses), para que, com isso seja possível converter um comprometimento negativo em um comprometimento positivo ou aumentar o nível de cooperação entre as partes.
Nessa medida, o objetivo da mediação não seria o acordo, mas a transformação do conflito. Essa visão parte do pressuposto de que o conflito não é fruto direto de situações objetivas, mas é fruto do modo como as pessoas interpretam uma situação e reagem a ela (uma mesma situação pode gerar conflito para certas pessoas e não para outras), de modo que é possível alterar o próprio conflito a partir da modificação do modo como as partes envolvidas o percebem. Não se trataria, pois, de uma simples negociação de interesses, mas de uma compreensão dos interesses e sentimentos, com a finalidade de transformar as relações que atingiram um grau de desequilíbrio tal que a autocomposição direta já não era mais um instrumento eficaz. Nas palavras do próprio Warat, a mediação é um trabalho de reconstrução simbólica do conflito, que é capaz de promover uma transformação no conflito por meio de uma (re)interpretação que, conferindo novas significações à relação conflituosa, recrie a possibilidade de uma convivência harmônica das diferenças. [30]
Essa idéia também está presente na concepção de Winslade e Monk, que, extrapolando elementos psicológicos da terapia narrativa (narrative therapy), desenvolveram o que chamaram de mediação narrativa (narrative mediation), uma perspectiva que acentua a dimensão lingüística dos conflitos e nega a pressuposição tradicional de que “what people want (which gets them into conflict) stems from the expression of their inner needs or interests. Rather it starts from the idea that people construct conflict from narrative descriptions of events”[31]. Por isso, as vertentes ligadas à orientação transformadora trabalham com as dimensões simbólicas do conflito, mais que com harmonização dos desejos derivados dessa percepção simbólica da experiência pessoal.
Nesse sentido, a função do mediador é estimular as partes a reconstruir laços emocionais rompidos (ou construir novos enlaces) e, com isso, fazer com que elas possam construir uma relação de convivência harmônica. Para usar a linguagem poética que marca as concepções[32] de Warat, a mediação tem como objetivo reintroduzir o amor no conflito, pois o mediador precisa contribuir para que as partes erotizem o conflito, inscrevendo o amor entre as pulsões destrutivas e, com isso, recolocando o conflito no terreno das pulsões de vida[33].
Essa afirmação evidencia um outro pressuposto fundamental da visão dominante nas perspectivas centradas no conflito, que é a idéia de que as tensões não são um problema a ser erradicado, mas componentes intrínsecos das relações pessoas. As pessoas são diferentes (têm diferentes desejos, interesses, sentimentos, etc.) e as relações humanas são o ambiente em que essas diferenças se produzem como realizações da autonomia das pessoas, gerando uma imensa riqueza em sua diversidade, embora gerando também tensões no entrechoque dessa mesma diversidade. Por conta disso, Warat considera o conflito como uma confrontação construtiva, pois ele entende a vida como um devir conflitivo que tem de ser adequadamente gerenciado[34].
Nesse contexto, o conflito mostra-se como “uma das principais forças positivas na construção das relações sociais e na realização da autonomia individual”, pois “à indiferença de força puramente negativa, autodestrutiva da indiferença, o conflito brinda com um incentivo para a interação e termina erigindo-se numa possibilidade para criar, com o outro [e não contra o outro], a diferença”[35]. Por isso, é normalmente um equívoco falar em resolução de conflitos emocionais, pois o que se pode fazer nesses casos é transformar o conflito, harmonizando e não anulando as tensões, motivo pelo qual Warat chama sua própria concepção de orientação transformadora, contrapondo-a à orientação acordista[36].

2. Mediação e conflito

Dado esse modo produtivo de encarar o conflito, não teria compreendido adequadamente a sua função um mediador que se propusesse a anular as tensões de forma absoluta e definitiva. Esse pseudo-mediador, normalmente de boa vontade, não só estaria em busca de um objetivo inatingível, mas tenderia a obliterar a própria riqueza da relação em que viesse a intervir. O mediador deve ter em mente que toda relação humana é plena de tensões e que nem o conflito pode ser definitivamente resolvido, nem isso é desejável, pois a conflituosidade (mantida, é claro, dentro de certos limites), é requisito e não empecilho a uma convivência saudável. Por isso, a função da mediação é transformar o modo como as partes percebem os seus conflitos, de forma a criar uma situação em que as partes sejam capazes de lidar autonomamente com a conflituosidade inerente a sua relação, no presente e no futuro.
A mediação, portanto, não pode ser reduzida à busca de um acordo. O acordo é uma norma a ser cumprida, ainda que ela provenha de uma decisão consensual das partes conflitantes — ele põe fim a um litígio, mas resolver o litígio não implica transformar o conflito. A mediação busca tornar o acordo desnecessário, fazendo com que o conflito não gere incompatibilidades ou tentando sanar as incompatibilidades anteriormente estabelecidas. Trata-se, pois, de ajudar as partes a desenvolverem formas autônomas para lidar com as tensões inerentes ao seu relacionamento, e não de buscar acordos que dêem fim a uma controvérsia pontual.
Isso aponta outro pressuposto fundamental, que é o fato de que as controvérsias que afloram em uma relação conflituosa normalmente têm raízes bem mais profundas que as que normalmente são percebidas à primeira vista, nem mesmo pelas partes. Como afirma Warat, em todo sentido enunciado existe um dito e um não-dito e conheceremos muito pouco se permanecermos simplesmente no nível do sentido manifestado, pois, “as partes, mais do que freqüentemente se imagina, não conhecem as suas próprias intenções e perdem-se nas formas de seus próprios enunciados; são essas as armadilhas do inconsciente que o mediador deve ajudá-las a trabalhar”[37].
Esse fato aponta para uma ligação muito forte do mediador com a psicologia, pois ele precisa compreender a fundo o conflito e os modos como as pessoas lidam com eles, para possibilitar que atue de maneira eficaz na sua transformação. Como os conflitos com forte dimensão emocional normalmente resultam das tensões vividas em uma relação que se prolonga no tempo e que tem múltiplas dimensões, buscar resolver o efeito sem atacar a causa real do desequilíbrio não seria uma saída razoável.
E o único modo de atacar as causas do conflito é não concentrar-se no próprio conflito (que é apenas efeito), mas no sentimento das pessoas, ajudando-as a olhar para si mesmas e a “sentir seus sentimentos”[38]. Por isso, o papel do mediador não é o de um negociador nem o de um conciliador (ambos estrategistas em busca do acordo), mas o de um “psicoterapeuta de vínculos conflitivos”[39], que busca auxiliar as partes a inscrever o amor no meio conflito.

3. Mediação e conciliação

A partir desse fato, torna-se claro que, no centro da distinção entre conciliação e mediação, está a postura do terceiro imparcial frente à autonomia das partes. O conciliador, tal como o negociador, ocupa tipicamente um lugar de poder, pois, embora ele não tenha autoridade para impor uma decisão às partes[40], as técnicas de que o conciliador se utiliza não são voltadas para fazer com que as partes reconheçam e realizem seus próprios desejos, mas têm como objetivo conduzir as partes a realizarem os objetivos do próprio conciliador, cuja função é a de propiciar um acordo, ainda que contra a vontade das partes. Embora isso possa soar paradoxal, muitas vezes o conciliador está interessado apenas em que as partes realizem um acordo, dado que ele se percebe como um sujeito cujo objetivo é fazer com que se resolva o litígio por meio de uma promessa mutuamente consentida.
Essa é uma situação especialmente comum nas conciliações institucionais, tal como as que ocorrem dentro do Poder Judiciário, tanto nas sessões de conciliação dos juizados especiais quanto nas audiências de conciliação e julgamento presididas pelos juízes. Nesses casos, o acordo não representa uma forma de valorizar a autonomia da parte, mas representa apenas uma estratégia para evitar que o juiz tenha que julgar o caso, acelerando o andamento do processo judicial. Inserida em um sistema de poder voltado para que autoridade do juiz substitua[41] a autonomia das partes, a conciliação não poderia deixar de estar vinculada ao poder e não à autonomia.
O conciliador judicial cumpre seu papel institucional e burocrático quando o acordo é assinado e, por isso, muitas vezes utiliza todos os meios de pressão disponíveis para fazer com que as partes aceitem algum acordo. E mais grave ainda é a distorção do papel dos juízes que, para “agilizar” o seu próprio serviço, pressionam as partes, afirmando expressamente (ou quase expressamente) a uma das partes que ela deveria aceitar uma certa proposta, pois o acordo lhe seria mais vantajoso que a decisão que ele tomaria se tivesse que resolver o litígio.
O mais trágico é que essa supressão da autonomia é revestida por um discurso de garantia da própria liberdade das partes. A legitimidade do acordo é baseada na idéia de que ele é fruto de uma decisão das pessoas envolvidas, mas, por um lado, muitos acordos resultam da pressão do meio judicial (e da ignorância das partes, que potencializa essa pressão) ou de negociações em que afloram apenas os aspectos mais superficiais do conflito, pois falta ao conciliador a formação (e muitas vezes o interesse) de explorar todas as dimensões do conflito. Ademais, aliar essa exploração das raízes do conflito à conscientização das partes sobre os limites da sua liberdade[42], possivelmente tornaria mais difícil o “acordo”, cuja obtenção é o objetivo do conciliador, mesmo que não seja o objetivo das partes (que não querem o acordo, mas a realização de seus próprios sentimentos de justiça).
Além disso, a cultura individualista propaga um ideal de autodeterminação bastante peculiar, que não deve ser confundido com o que chamamos aqui de autonomia, pois esse ideal tem a ver com o exercício dos interesses de cada pessoa, mesmo que essa pessoa não conheça adequadamente seus próprios sentimentos nem seja capaz de avaliar devidamente as conseqüências de suas ações. Nesse modelo, o exercício de um desejo imaturo e egoísta, carregado de frustrações e carências, fundado em um sentimento superficial e possivelmente passageiro, tende a ser entendido como uma legítima manifestação de autodeterminação da pessoa[43].
Seguindo a orientação acordista, buscar-se-ia resolver o litígio por meio de um acordo, em vez de oferecer à pessoa que vive um conflito interior a possibilidade de resolver suas próprias tensões internas, para que ela possa vir a transformar adequadamente seus conflitos intersubjetivos. Por tudo isso, mesmo que o discurso do conciliador seja estabelecido em função do acordo, o lugar do conciliador é o lugar do poder que se impõe (pois mesmo acordos podem ser impostos) e não o lugar da autonomia que se constrói.
Ademais, mesmo quando atua apenas como um facilitador, o discurso do conciliador é estratégico e não comprometido, servindo a uma tentativa de limitar a autonomia das pessoas por meio de uma promessa formal. Se a promessa pode ser entendida, por um lado, como fruto da autonomia, ela estabelece uma prisão no momento em que é feita. A promessa é uma norma a ser cumprida e, embora a resolução normativa de conflitos seja uma estratégia de limitação da liberdade adequada para lidar com conflitos de pouca densidade emocional, é impossível enquadrar em normas a complexidade de uma relação multidimensional.
Possivelmente todos já tentamos estabelecer regras para regular conflitos de fundo emocional em relações de múltiplo vínculo, e todos já nos demos conta de que a manutenção pura e simples dessas regras, longe de harmonizar a relação, termina por gerar novos conflitos e solapar a poesia. A emoção não exige o mero cumprimento estratégico da regra, mas a sinceridade em um agir comprometido com os sentimentos do outro — e as normas são inúteis para regular os sentimentos[44].

4. Limites da mediação

A esta altura, já deve ter ficado claro que a mediação (tal como definida por Warat, que podemos identificar com a mediação transformadora de Bush e Folger e, em linhas gerais, com a perspectiva narrativa de Winslade e Monk), não é aplicável a imensa gama de conflitos — toda vez que o conflito não envolver uma relação afetiva entre as partes, as tentativas de autocomposição mediada serão descabidas, pois a mediação é um trabalho sobre afetos em conflito, não um acordo exclusivamente patrimonial e sem marcas afetivas”[45]. Como o mediador atua justamente no restabelecimento dos laços emocionais desestabilizados pelo acirramento de um conflito que poderia ter sido mantido em um nível razoável, o sucesso da mediação pressupõe que o conflito tenha uma dimensão afetiva.
Isso, porém, não quer dizer que a mediação apenas se aplica a conflitos familiares, pois há uma dimensão emocional forte em quase toda relação de múltiplo vínculo, pois as pessoas são ligadas, entre si e com a comunidade circundante, por vários interesses e valores inter-relacionados. Tal é o caso não apenas nas relações familiares, mas também nas relações de vizinhança, relações de trabalho, relações de amizade ou companheirismo. De que adianta cobrar uma dívida conflituosa e impossibilitar a relação com um colega de turma com o qual se precisa conviver diariamente por mais quatro anos? Além disso, devem ser levadas em consideração as implicações desses fatos nas relações com as outras pessoas interessadas, pois o modo como tratamos um colega influi no modo como toda a comunidade nos trata[46].
Para resolver situações desse tipo, a aplicação de estratégias puramente normativas (seja a aplicação de regras gerais preestabelecidas ou a criação consensual de novas regras) é muito pouco útil, pois elas provavelmente acirrariam o conflito em vez de resolvê-lo. Para dar conta dessa complexidade de vínculos, a mediação mostra-se o instrumento mais adequado, pois tem a flexibilidade necessária para avaliar as várias implicações do conflito e não impõe às partes nenhuma espécie de obrigação — ao menos de uma obrigação consubstanciada em uma regra formalmente reconhecida, como uma sentença, um laudo arbitral ou um acordo feito frente a um conciliador.
Contudo, essa flexibilidade pressupõe a existência de uma dimensão afetiva no conflito e um interesse das partes em reconstruir a sua relação em novas bases. Com isso, embora seus limites sejam razoavelmente estreitos, a mediação é capaz de tratar de problemas inacessíveis à conciliação e à arbitragem, pois pode e efetivamente trata de direitos indisponíveis e, em vários casos, é uma alternativa mais adequada que a jurisdição. Todavia, é preciso admitir a sua completa inutilidade nas relações de vínculo único ligadas a um agir estrategicamente indiferente, pois, quando há apenas uma oposição de interesses sem dimensão emocional relevante, a intervenção de um conciliador ou de um juiz tende a ser mais adequada que a de um mediador.

V - Mapeando as estratégias heterocompositivas

A heterocomposição é um modo de composição de conflitos no qual existe a figura de um terceiro imparcial que tem autoridade para impor uma solução para as partes em conflitos. Assim, enquanto na autocomposição mediada o terceiro limita-se a orientar as partes e não tem o poder de suprimir a autonomia dos envolvidos no conflito, na heterocomposição existe um terceiro que toma decisões que podem ser impostas às partes.
Se, por exemplo, Capitu e Bentinho não chegassem a um acordo sobre a divisão dos bens que pertenciam a ambos, eles poderiam convidar um amigo comum e solicitar a ele que fizesse a divisão, comprometendo-se a aceitar as escolhas feitas pelo amigo. Como o amigo não foi chamado simplesmente para opinar, nem apenas para mediar, mas para tomar uma decisão imponível às partes, não se trata de autocomposição mediada, mas de heterocomposição.

A - Arbitragem

No exemplo acima descrito, o amigo convidado a tomar uma decisão atuaria como árbitro, ou seja, como terceiro imparcial cuja autoridade para decidir o litígio deriva da própria escolha das partes. Não caberia falar, portanto, de uma arbitragem imposta, pois a escolha da via arbitral sempre precisa ser fruto de uma decisão autônoma das partes envolvidas no conflito.
A autoridade do árbitro, portanto, não deriva de uma autoridade superior às partes, mas da própria autonomia das pessoas envolvidas no conflito: se elas poderiam resolver o litígio por meio de uma autocomposição, também podem elas escolher uma autoridade para dar fim ao litígio. Por não depender de uma autoridade superior às partes, a arbitragem é a única forma de heterocomposição existente no direito internacional, pois não há nenhuma autoridade internacional que seja hierarquicamente superior à dos Estados. Portanto, se o Brasil tiver um conflito com a Argentina e não for possível chegar a um composição consensual, não há como recorrer a uma autoridade superior, restando aos envolvidos apenas a autotutela[47] ou a arbitragem.
Os Estados nacionais em conflito poderiam, portanto, nomear um outro Estado como árbitro, atribuindo a ele a autoridade para resolver a questão, de forma que a solução que ele der ao caso, mediante um laudo arbitral, obrigará às partes conflitantes. Percebe-se, pois, que a arbitragem é heterocomposição, pois, se há autonomia no tocante à escolha dos árbitros, a decisão do árbitro é válida independentemente da vontade das partes — e seria inútil se assim não o fosse. Portanto, embora a via arbitral seja escolhida autonomamente as suas decisões são impostas de forma heterônoma.
Mesmo os chamados tribunais internacionais, como o de Haia (ou da Haia), não passa de uma corte permanente de arbitragem. Se algum Estado resolver demandar o Brasil frente ao Tribunal de Haia, a primeira coisa que essa Corte fará será perguntar ao Brasil se ele confere ao Tribunal autoridade para decidir o caso. Se o Brasil disser que não (tecnicamente diríamos que o Brasil recusaria a jurisdição da Corte), o processo será simplesmente encerrado. Se o Brasil disser que sim, então ele conferirá autoridade à Corte para agir como tribunal arbitral.
Contudo, a opção pela arbitragem pode ser feita antes mesmo do afloramento do conflito. No campo internacional, por exemplo, há vários países que firmaram um tratado comprometendo-se a aceitar a autoridade do Tribunal de Haia, sempre que fossem demandados para resolver litígios internacionais. No direito interno brasileiro, observa-se atualmente um crescimento constante no número de contratos que possuem uma cláusula arbitral, ou seja, uma disposição que determina que os conflitos resultantes do contrato serão resolvidos por meio de arbitragem e não pelo recurso a um juiz do Estado. Com isso, a opção pela via arbitral preexiste ao conflito, sendo que esse tipo de escolha vincula as partes à arbitragem.
Além disso, a pessoa do árbitro nem sempre precisa ser escolhida de comum acordo pelas partes, pois a maioria das cláusulas arbitrais atribui a autoridade para resolver o conflito não a um indivíduo, mas a uma determinada Câmara de Arbitragem. Cada Câmara de Arbitragem tem suas regras próprias e um corpo específico de árbitros, de tal modo que, a partir da assinatura do contrato, as partes ficam vinculadas às regras da respectiva Câmara de Arbitragem, inclusive as que dispõem sobre a escolha dos árbitros.
Também é possível aos cidadãos brasileiros optar pela arbitragem após o surgimento do conflito, o que é feito por meio de um contrato por meio do qual se constitui uma pessoa como árbitro para dar fim a um certo litígio. Por meio desse compromisso, além de nomear o árbitro, deve-se estabelecer os limites do seu poder e definir os critérios que ele deverá utilizar, ou determinar que serão seguidas as regras de uma Câmara Arbitral determinada.
Assim, a arbitragem posterior ao conflito somente é viável quando as partes conflitantes são capazes de eleger uma pessoa ou instituição que ambas considerem idônea — o que nem sempre é fácil, devido às divergências valorativas que pode haver entre as pessoas em conflito. Por conta dessa dificuldade, a arbitragem mostra-se uma saída muito conveniente para o tratamento de questões fundamentalmente técnicas/científicas, pois a escolha do árbitro dependerá de qualificações profissionais, mais que de seus valores ideológicos.
Todavia, em casos muito ligados a juízos de valor, a arbitragem somente se mostraria razoável quando as partes comungassem a mesma ideologia: que árbitro seria possível para resolver uma questão de fundo ético, como é o normal das questões familiares e em outros conflitos multidimensionais? Em casos desse tipo, quando há um conflito de valores, a opção pela arbitragem não parece ser a mais indicada, pois, mesmo que a lei permita a arbitragem para resolver litígios de natureza patrimonial, o conflito subjacente pode transcender em muito a questão patrimonial que aflorou no litígio.
Além disso, o reconhecimento dos limites da arbitragem fez com que a lei brasileira limitasse a sua aplicação aos direitos disponíveis, especialmente os patrimoniais, vedando a sua utilização em conflitos que envolvem direitos indisponíveis, como a vida, a liberdade, vários direitos ligados à família, entre outros. Nesses casos, como o direito é considerado indisponível (a pessoa não pode abdicar dele nem negociá-lo, ainda que o deseje), o Estado reserva a si a possibilidade de resolver os conflitos a eles relativos, por via jurisdicional. Assim, a arbitragem fica praticamente restrita às questões patrimoniais — as quais não são poucas em número, relevância ou complexidade.

B - Jurisdição

Processo judicial, modelo judiciário ou jurisdicional, adjudicação, jurisdição: todos esses nomes servem para designar um modo específico para a resolução de conflitos[48]: submeter o conflito à apreciação de um juiz cuja autoridade não deriva das partes, mas é definida por uma organização política. Embora o próprio conceito de jurisdição não envolva a submissão dos juízes a um conjunto predeterminado de regras[49], a jurisdição existente nos Estados de Direito é marcada pelo fato de que os juízes nomeados pela organização política apenas recebem autoridade para decidir os casos de acordo com um conjunto predeterminado de normas, o qual pode ser chamado de ordenamento jurídico positivo.
Diversamente da arbitragem, que pode ocorrer sem a necessidade de uma autoridade que se imponha às partes, a jurisdição pressupõe uma organização política centralizada, pois ela somente pode ocorrer onde há a consolidação de um poder centralizado, capaz de definir certas autoridades como competentes para decidir sobre os conflitos sociais que lhe forem apresentados. Eis aqui uma das características fundamentais do modelo jurisdicional: a obrigatoriedade de submeter-se ao julgamento e acatar a decisão final. Quando uma pessoa aciona outra frente ao judiciário (tornando-se, então, autor de uma ação), o réu[50] não pode dizer simplesmente: não reconheço a autoridade do tribunal. No modelo de adjudicação, a autoridade do tribunal é definida previamente e não depende da aceitação das partes — motivo pelo qual podemos dizer que se trata de um modelo heterônomo de resolução de conflitos.
Tal heteronomia também se manifesta no caráter impositivo do resultado do processo, pois a decisão tomada pelo juiz é imposta às partes demandantes, ainda que ambas estejam descontentes com ela. Assim, a validade da sentença, bem como a autoridade do juiz, não dependem da aceitação das partes envolvidas no julgamento. Por conta disso, não existe jurisdição propriamente dita no campo do direito internacional, pois não há nesse âmbito nenhuma autoridade juridicamente superior aos Estados.
Já no direito interno dos estados modernos, na medida em que os Estados atuais tendem a buscar o monopólio da criação e da aplicação do direito, a jurisdição tornou-se o modelo jurídico privilegiado, especialmente porque ele reforça o poder da organização política institucionalizada. E é por isso que esse é modelo que, no Brasil, orienta a organização do Poder Judiciário e também de vários outros órgãos estatais — como os Tribunais de Contas, que fazem parte do Poder Legislativo, ou os Conselhos de Contribuintes, que fazem parte do Poder Executivo.
Esse modelo de decisão está tão intimamente ligado ao modelo estatal contemporâneo que muitas pessoas reconhecem nele a única forma verdadeiramente jurídica de resolução de conflitos, o que implica a identificação de jurídico e judicial. Assim, não são poucos os juristas que entendem como direito as regras utilizadas (ou utilizáveis) pelos juízes e tribunais, na sua atividade jurisdicional. Esse exagero não se restringe aos positivistas normativistas, mas também está presente em vários representantes das escolas sociológicas, não sendo poucos os que definem que direito é aquilo que os tribunais definem como tal[51].
Pela importância desse modelo para o Estado contemporâneo, quase todas as discussões jurídicas giram em torno dele. Em especial, o jurista é formado quase que exclusivamente para lidar com os modelos jurisdicionais — ainda que muitos deles nunca cheguem a operar nesse campo. Os cursos de direito ensinam basicamente os códigos de processo (regras que disciplinam o comportamento dos tribunais) e as leis que estabelecem direitos e deveres para as pessoas (os quais podem ser demandados frente a um tribunal). Mas não devemos perder de vista que o espaço do modelo jurisdicional vem sendo redefinido, especialmente na última década, bem como demais métodos de composição de conflitos vêm adquirindo uma importância crescente na sociedade contemporânea, especialmente em virtude de uma crescente consciência dos limites da jurisdição.

VI - Articulando os mapas: avaliação crítica e comparativa das estratégias

Há dez anos, a arbitragem era praticamente ineficaz no direito brasileiro, os juízes não tinham obrigações reais de buscar uma conciliação entre as partes, não havia juizados especiais e sequer se tratava a mediação como uma forma jurídica de solução de conflitos. Porém, essa situação mudou drasticamente no decorrer da última década e, se a um profissional do direito já bastou conhecer os meandros do processo judicial, hoje ele precisa saber escolher o método mais adequado para o conflito que a ele cabe ajudar resolver.
Se, há dez anos, um cliente procurasse um advogado e lhe colocasse um problema, a este profissional normalmente caberia decidir que tipo de ação judicial seria a mais adequada. Hoje, contudo, ele precisa conhecer as várias estratégias de enfrentamento dos conflitos e não pode perder de vista que pode ser mais adequado optar pela mediação, pela conciliação ou pela arbitragem — ou, o que eleva bastante o nível de complexidade da questão, por uma combinação dessas várias estratégias. Façamos, então, um ligeiro estudo sobre as vantagens e desvantagens de cada um desses métodos.

A - Mediação e Conciliação

Embora a autocomposição direta seja o início do processo de composição de quase todo conflito[52], muitas vezes as partes não conseguem chegar a resultados adequados sem a intervenção de um terceiro imparcial. Quando existe um comprometimento negativo ou um baixo grau de comprometimento positivo entre as partes, a utilização de técnicas de mediação tende a ser muito útil, pois a solução adequada de uma série de conflitos passa pela sensibilização de uma parte em relação à justiça dos interesses da outra, bem como do desenvolvimento de uma consciência mais aprofundada de seus próprios sentimentos e desejos.
Essa transformação do conflito, contudo, nem sempre se mostra suficiente, pois há várias situações em que é preciso estabelecer acordos, decidir questões pontuais, fazer negociações variadas. Mesmo em um caso de direito de família, que é o mais típico campo de mediação, é preciso definir o valor da pensão alimentícia, as datas em que cada um dos pais buscará o filho na escola, que bens ficarão com cada um, além de uma série de outras coisas. Nessas hipóteses, por maior que seja o comprometimento entre as pessoas, técnicas de conciliação podem ser utilizadas de forma muito útil na tentativa de produzir um ajuste de condutas que possa ser aceito consensualmente.
Portanto, estratégias de mediação e de conciliação precisam ser utilizadas muitas vezes em conjunto, na tentativa de possibilitar a produção de uma relação estável entre as partes em conflito. Além disso, essas estratégias devem ser utilizadas mesmo por juízes (e por árbitros, se for o caso), pois há regras no próprio direito positivo determinando que os juízes têm o dever de buscar inicialmente o acordo e decidir por si mesmo apenas em casos nos quais o acordo não é possível (como em direitos indisponíveis) ou não foi alcançado. Portanto, essas estratégias, longe de serem incompatíveis, são extremamente importantes para o próprio exercício contemporâneo do poder judicial.
Outra vantagem desses processos é que, quando realizados de maneira extrajudicial, eles podem ser mantidos em sigilo[53], o que é muito relevante em uma série de casos. Além disso, mesmo que não resolvam todos os problemas que aflorem dentro de uma relação conflituosa, a mediação pode ser capaz de reduzir o nível de tensão e a conciliação pode eventualmente resolver alguns problemas pontuais, o que provavelmente facilitaria bastante a resolução dos litígios restantes pelos modos de heterocomposição.

B - Arbitragem

A consciência dos limites do Poder Judiciário e do modo adjudicativo de resolução de conflitos, aliada a uma mudança legislativa que autonomizou as decisões arbitrais, vedando a possibilidade de que o judiciário as reavalie em seu conteúdo[54], tem feito com que a arbitragem ganhe um espaço crescente no Brasil.
Os defensores da arbitragem normalmente apontam como sua vantagem mais evidente a celeridade, que pode ser garantida nesse modelo de forma muito mais eficiente que na jurisdição, pois a liberdade que as partes têm para definir o processo decisório normalmente resulta em processos mais ágeis, com prazos mais curtos e pequena ou nenhuma possibilidade de recurso. Para alguns casos específicos, essa vantagem é extremamente relevante, pois a demora judicial pode gerar prejuízos para ambas as partes envolvidas.
Imagine, por exemplo, uma questão em que se discutisse se um determinado componente de um satélite de telecomunicações cumpria ou não os requisitos estabelecidos no contrato. Nessa hipótese, se a decisão final for tomada em 3 ou 4 anos, o que não seria de forma alguma anormal, a tecnologia utilizada possivelmente já seria obsoleta à época da sentença. Assim, se, no início, era possível resolver o litígio de modo a possibilitar a conclusão do projeto (determinando-se, por exemplo, o dever de o fornecedor oferecer um equipamento adequado), a demora poderia fazer com que ninguém mais tivesse interesse econômico no objeto do conflito, o que reduziria a questão a uma ação indenizatória.
A demora tornaria inútil a prestação jurisdicional — e a jurisdição não tem como ser rápida em casos muito complexos, pois, além de ser necessário observar processos burocráticos rigorosamente definidos, a garantia do direito de ampla defesa faz com que haja uma série imensa possibilidades de recorrer das decisões. Assim, por mais que se tente agilizar os processos judiciais, eles não chegariam a ser tão rápidos como é possível em um processo arbitral.
Essa celeridade, porém, tem um custo que pode ser bastante elevado. Embora seja muito propagada a idéia de que a arbitragem é mais barata que a jurisdição, é temerário fazer uma afirmação tão geral como essa, pois a arbitragem pode ter custos mais altos para as partes que a jurisdição. Isso ocorre especialmente porque, enquanto as partes precisam remunerar toda a estrutura ligada ao juízo arbitral, o Poder Judiciário é praticamente sustentado pelo Poder Público, que arca com a maior parte dos custos, como a remuneração dos juízes e dos servidores do Poder Judiciário. Já no processo arbitral, as partes têm que remunerar profissionais especializados (e conseqüentemente caros), como advogados, árbitros e técnicos, além de sustentar toda a estrutura administrativa envolvida. Assim, embora o custo da jurisdição talvez possa ser maior, o custo final para as partes pode ser bem menor, especialmente em processos que envolvam pequenas quantias.
Entretanto, para vários setores, esse custo é plenamente compensado por uma garantia que a jurisdição não pode conferir: o sigilo. Exceto em certos casos especiais, o processo judicial é público, as audiências são públicas, a decisão pode ser acessada por qualquer pessoa. Para muitas pessoas, especialmente para grandes empresas, estabelecer um debate público acerca de uma série de temas pode ser tão desgastante para a sua imagem que um processo sigiloso, como é possível na arbitragem e as diversas formas de autocomposição, representaria uma saída mais adequada, ainda que eventualmente mais onerosa.
Apesar dessas vantagens relativas sobre a jurisdição, há um problema severo na arbitragem que é normalmente deixado de lado. O resultado da arbitragem é uma decisão que tem o status de título executivo judicial, ou seja, ele equivale a uma sentença prolatada por um juiz do Estado. Com isso, se a parte perdedora decidir não cumprir a decisão arbitral, a execução forçada não pode ser realizada pelo árbitro, pois a lei atribui apenas ao Judiciário o poder de cobrar coercitivamente uma dívida. Assim, se a parte vencida no processo arbitral não cumprir espontaneamente a decisão, será necessário entrar na justiça para efetuar a cobrança, o que restringiria muito (ou mesmo anularia) as vantagens iniciais de sigilo e celeridade, especialmente porque a execução é responsável por boa parte da demora nos processos judiciais.
Outros problemas relativos à arbitragem serão discutidos no ponto seguinte, pois são idênticos aos enfrentados na adjudicação. Isso ocorre porque esses dois modelos são extremamente similares, pois ambos envolvem a atribuição a um terceiro do poder de decidir um litígio, de acordo com regras predeterminadas[55]. Como afirma Warat, tanto o árbitro como o juiz julgam baseados na verdade formal (ou seja, julgam apenas com base nas evidências trazidas para o processo) e decidem o litígio baseados nas versões apresentadas pelos representantes das partes (que nem sempre expressam a verdadeira vontade dos representados, seja por não a conhecerem ou por não lhes convir dizê-las), e tanto a sentença como o laudo arbitral apenas determinam o encerramento do litígio, não resolvendo a relação afetivo-conflituosa das pessoas envolvidas[56]. Todas essas semelhanças fazem com que a maior parte das críticas apontadas ao modelo judicial seja também aplicável ao modelo arbitral, especialmente no tocante ao pensamento normativista e à limitação ao litígio.
 Por fim, cabe ressaltar que a arbitragem é a via que menos tipos de conflitos pode atingir, pois limita-se aos direitos disponíveis, especialmente os patrimoniais. Embora esse seja um grande campo, o qual envolve todas as relações comerciais e muitas das relações civis, há uma série de questões relevantes que não são abrangidas pela arbitragem em campos como o direito de família. Além disso, a arbitragem não pode ser utilizada nos conflitos que envolvem o Estado, o que retira de seu campo de abrangência todo o direito público. Porém, embora se trate de uma via relativamente estreita, ela pode ser bastante eficaz para a resolução de uma série de controvérsias, especialmente em matérias de fundo técnico ou que têm uma dimensão emocional reduzida, quando for muito provável que o perdedor cumpriria espontaneamente as decisões do árbitro.

C - Modelo judicial

O modelo judicial responde bem ao individualismo das sociedades contemporâneas, pois tende a tratar as pessoas de forma igualitária e possibilita a resolução de conflito entre pessoas estranhas entre si e que não têm qualquer interesse convergente. Além disso, trata-se de um modelo capaz de adquirir um alto grau de institucionalização, gerando carreiras especializadas, o que pode elevar a eficiência do sistema. Todavia, a burocracia assim criada pode ter uma série de problemas, como excesso de formalismo e afastamento dos conflitos reais, bem como a criação de mecanismos de exclusão e manutenção do status quo.
Assim, se o estabelecimento de regras predeterminadas é uma estratégia bastante adaptada à racionalidade burocrática típica dos Estados modernos, voltada à definição de padrões claros e previsíveis de organização, ela também gera alguns problemas. Um sistema judicial organizado de forma burocrática normalmente funciona por meio da aplicação de normas gerais aos casos concretos, definindo assim uma solução juridicamente correta. Trabalhar sempre com regras predefinidas é uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que limita certos tipos de arbitrariedade, cria certos espaços de arbitrariedade legitimada (ou discricionariedade, para usar um termo mais técnico).
É preciso interpretar as normas. É necessário definir o significado de expressões ambíguas. É preciso lidar com os casos em que as normas são omissas ou contraditórias. Esses são os limites de todo sistema fundado em regras gerais preestabelecidas — e esses limites são o objeto principal de estudo da presente disciplina. Por trabalhar com regras predeterminadas, apenas os critérios fixados nas normas são considerados juridicamente relevantes. Assim, o sistema pode tornar-se excessivamente rígido, como testemunha o velho adágio latino dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é a lei), o qual, aliás, já foi usado para justificar muitas arbitrariedades praticadas em nome da lei.
 Por outro lado, a flexibilização do sistema, quando se trabalha com normas predeterminadas, apresenta uma série de dificuldades. Podemos atribuir um sentido a uma palavra constante em uma lei e, logo em seguida, atribuir significado completamente diverso à mesma palavra quando ela ocorre em uma outra norma? Quando é possível tratar desigualmente as pessoas? Como evitar a influência exagerada da subjetividade do juiz? Essas questões sempre são conturbadas, quando tratamos de um modelo jurisdicional fundado em normas preestabelecidas.

1. Limites inerentes ao modelo judicial

Como foi ressaltado, o modelo jurisdicional de resolução de conflitos desempenha o papel de maior relevo no tocante à justiça oficial: é o Poder Judiciário que tem o dever de aplicar as regras criadas pelo próprio Estado, fazendo com que a sociedade conforme-se a esses padrões. Dessa forma, não se deve estranhar o fato de que a própria Constituição Federal estabeleça, no seu art. 5o, que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do judiciário. Assim, há um princípio jurídico que exige a universalidade da jurisdição: a sua aplicação, ao menos potencial, a todo e qualquer conflito surgido no âmbito de poder do Estado. Ressaltamos que esse princípio pode ser visto (ao menos) por duas perspectivas muito diversas.
Para aqueles que enxergam no Judiciário a forma de se fazer justiça, o princípio da universalização do acesso ao Judiciário é visto como uma grande conquista democrática, pois nem mesmo a lei pode fazer com que certas pessoas ou atos sejam imunes à intervenção judicial. Nessa medida, o princípio do acesso à justiça é entendido como um dos pilares de um Estado de direito.
Todavia, para aqueles que entendem que o Estado deve abster-se o mais possível de interferir na vida das pessoas, a universalização da autoridade judicial pode ser entendida como um poder demasiado grande nas mãos do Estado. Quando um Estado determina que um direito é indisponível, isso significa que a última palavra quanto a esse direito sempre estará nas mãos do próprio Estado. E qual é o limite da autoridade do Estado?
Pode um doente terminal decidir pela eutanásia? Pode alguém enterrar seus mortos no jardim de sua casa, para obedecer sua última vontade? Pode alguém ser racista? E pode ensinar essa postura a seus filhos? Pode alguém ser um mendigo, ainda que tenha possibilidades de trabalhar? Pode o Estado determinar que todo órgão de uma pessoa morta pode ser utilizado em transplantes? Pode o Estado obrigar um judeu a trabalhar em uma eleição realizada em um sábado? Pode o Estado estabelecer que o topless é proibido na Praia de Copacabana?
Independentemente das respostas que vocês ofereçam a essas perguntas, pode o Estado estabelecer que será sempre dele a última palavra quando essas questões vierem à tona? Talvez seja a opção mais conveniente. Talvez seja a opção mais aceitável, mas comporte algumas exceções. Talvez seja uma forma de ocultar a dominação por meio de uma estrutura burocrática. As respostas a essa pergunta serão resultado das posturas ideológicas de cada um — não parece razoável admitir que existe apenas uma resposta correta para essa questão.
E fazemos essas observações por um único motivo. No estudo do direito, normalmente o Judiciário é apresentado aos estudantes apenas em sua face bela: uma instituição voltada para fazer justiça — ou ao menos para aplicar as regras que formam a justiça possível. As suas faces obscuras normalmente são ocultadas — deixamos para que vocês a conheçam na sua vida prática. Todavia, mesmo para os que conhecem essas vicissitudes, os problemas são encarados como exceções, como imperfeições na aplicação de um modelo adequado. Raramente se critica o modelo judicial, embora se admita que a sua prática é muitas vezes desvirtuada.
E gostaria de chamar a atenção para o fato de que o próprio modelo judicial tem seus limites. Certos pontos que alguns descreveriam como aplicação imperfeita poderiam ser classificados como uma imperfeição inerente ao modelo. O juiz é sempre um homem e, portanto, não podemos supor que ele será imparcial, onisciente e incorruptível. As regras gerais têm vários significados possíveis. A jurisdição atual segue um modelo centralizador e burocrático e não pode ser entendido fora do contexto do Estado capitalista contemporâneo, com todas as suas virtudes e limitações.
Portanto, é preciso não ter uma visão idealizada do direito e do Poder Judiciário: essas figuras precisam ser entendidas dentro de suas próprias contradições, como qualquer outra instituição criada pelo homem. Como disse Tercio Sampaio Ferraz Jr.:
O direito contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo para expressar e produzir a aceitação do status quo, da situação existente, mas aparecendo também como sustentação moral da indignação e da rebelião. O direito, assim, de um lado, nos protege do poder arbitrário, exercido à margem de toda regulamentação, nos salva da maioria caótica e do tirano ditatorial, dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, pela sua complexidade, é acessível apenas a uns poucos especialistas.
Assim, o direito tem contradições internas e complexidades que não podem ser reduzidas a um modelo coerente e simples. Portanto, não se pode esperar outra coisa de uma instituição que tem como função dizer o direito: uma tentativa constante de coerência, mas uma estrutura e uma prática necessariamente contraditória. E fazer com que as pessoas relevem os problemas da prática cotidiana por identificá-la à prática imperfeita de um modelo ideal é um dos mais antigos instrumentos de ocultação ideológica da realidade.
Ademais, o direito e o judiciário são instrumentos e, como todo instrumento, são muito úteis para certas tarefas, porém inúteis, e até mesmo perversos, para outras. É preciso, pois, conhecer os limites dos nossos instrumentos, para que não exijamos deles mais do que eles podem nos proporcionar. E o objetivo deste curso é justamente o estudo de alguns desses limites.

2. Limites do pensamento normativista

Como já foi dito anteriormente, é possível existir um modelo jurisdicional no qual o papel do juiz seja o de resolver os conflitos apenas com base em suas percepções subjetivas. A sabedoria do rei Salomão, por exemplo, estava na sua capacidade de tomar decisões justas e não na sua habilidade em aplicar regras preexistentes aos problemas do presente. O rei absolutista não estava submetido às regras jurídicas que ele mesmo criava, pois poderia modificá-las a qualquer tempo. Assim, a sua vontade era o padrão pelo qual ele julgava os conflitos a ele submetidos.
Todavia, esse não é o modelo jurisdicional vigente nos atuais Estados de Direito. Nesse tipo de organização política, todas as pessoas estão submetidas às regras jurídicas e a função dos juízes é a de resolver os conflitos com base nas normas do Direito. Do juiz não se exige que seja sábio, virtuoso ou justo (afinal, o que é a sabedoria, a virtude ou a justiça?), mas que aplique devidamente as regras preestabelecidas — ou ao menos é essa a concepção dominante no senso comum dos juristas. A partir do momento em que se entende que os conflitos sociais devem ser resolvidos por meio da aplicação de regras gerais preexistentes, a função jurisdicional ganha contornos mais ou menos claros e tende a formar uma estrutura burocrática especializada.
Temos, então, pessoas escolhidas para ocupar permanentemente o cargo de juízes, as quais precisam ter uma formação especial para desempenhar suas funções. Certas pessoas especializam-se no aconselhamento das pessoas que precisam dirigir-se aos juízes: os advogados. E hoje em dia raramente é possível mover a máquina judiciária sem estar representado por um advogado. Também há outras funções que se especializaram: o ministério público, os peritos, os diretores de secretaria, os serviços de jurisprudência e de informações processuais, etc.
Assim, em torno da atividade jurisdicional, formou-se uma burocracia altamente especializada. No centro dessa burocracia, estão os órgãos judiciais, cuja função declarada é a de aplicar as regras preexistentes aos casos concretos e, assim, decidir os conflitos com base no Direito — e não na vontade subjetiva e caprichosa do juiz. Mas essa função envolve uma série de questões de dificílima solução, pois a aplicação de regras gerais a casos específicos é sempre problemática.
O que é interpretar? Existe apenas uma interpretação correta para cada norma jurídica? Se existe tal interpretação, existe também um método que nos permite encontrá-la? Se não existe tal interpretação, qual deve ser o papel do judiciário? Não será uma utopia pensar que a função dos juízes é a de aplicar as regras preexistentes e não a de criar novas regras para os casos concretos? É possível haver uma decisão judicial na qual as posições subjetivas do juiz não tenham influência? Questões como essas orientam toda a discussão sobre hermenêutica jurídica, que tem ganho cada vez mais espaço nos estudos filosóficos e dogmáticos contemporâneos.

3. Concentração no litígio

Além disso, um dos grandes problemas que acompanha o modelo de adjudicação é o fato de que ele tende a desconsiderar os conflitos reais e preocupar-se apenas com a aplicação das regras. Em outras palavras, importa o litígio (parcela do conflito decidível à luz das regras do direito positivo) e não o conflito (oposição real de interesses), motivo pelo qual os juízes tendem a aplicar as regras, ainda que isso não resolva o conflito ou até mesmo o acirre, pois o seu objetivo primordial é encerrar o litígio e não transformar o conflito[57].
Ademais, mesmo que atualmente, na busca de uma decisão mais adequada, cada vez mais juízes busquem conhecer mais a fundo o conflito subjacente, eles não podem romper efetivamente os limites do litígio, pois é o pedido das partes que determina o litígio e a autoridade judicial não pode decidir além do que lhe foi pedido. Nessa medida, concordo com Boaventura de Sousa Santos quando ele afirma que só a “mediação[58] pode subverter a separação entre o conflito processado e o conflito real, separação que domina a estrutura processual do direito do estado capitalista e que é a principal responsável pela superficialização da conflituosidade social na sua expressão jurídica”[59].
Portanto, como os poderes do juiz estão adstritos ao litígio, a única forma de ultrapassar essa barreira é estimular a autocomposição das partes, por meio de estratégias de mediação e/ou conciliação, que estimulem um exercício autônomo de transformação do conflito, pois apenas os próprios envolvidos podem superar os limites do litígio.

D - Substituição da autonomia das partes pela autoridade estatal

Por fim, cabe ressaltar que o processo judicial é um processo de substituição da autonomia das partes pela autoridade do juiz. Esse processo é justificado ideologicamente com base no pressuposto de que o juiz pode intervir de maneira neutra no conflito porque ele julga com base em regras definidas pelos poderes políticos legítimos e aplicadas de modo objetivo. Com isso, o discurso do judiciário é sempre voltado para a imposição da autoridade, pois a sua função primordial é justamente a de impor decisões heterônomas às partes em litígio. Com isso, trata-se de um modelo que não estimula a autonomia das partes, mas prima por restringi-la mesmo quando trabalha dentro de um discurso de conciliação.
Essa imposição de poder trabalha não apenas com o mitos da objetividade da lei e da neutralidade do juiz, mas com toda uma panóplia de meios que subtraem das partes a sua autonomia. Por a adjudicação não segue apenas um procedimento formal, mas toda uma série de ritos que ressaltam o poder do juiz, a partir de estratégias de violência simbólica: o juiz tem uma veste peculiar, senta-se acima de todos, é chamado por um pronome de tratamento específico, utiliza normalmente (ou ao menos em casos específicos) uma linguagem inacessível aos leigos, dita ao escrivão tudo o que vai para os autos, tem o monopólio do direito de perguntar, etc.
Trata-se de todo um ritual que tende a impor às partes um temor reverencial ao juiz (e conseqüentemente ao poder que ele representa), que pode ser eficiente no sentido de criar uma mística que tenda a gerar uma maior respeitabilidade para as decisões. É preciso distanciar o juiz dos leigos para que estes aceitem que ele decida sobre a sua vida, coisa que nunca admitiriam de um de seus pares. Embora esse tipo de mística seja tanto mais útil quanto maior for a ignorância das partes, mesmo os que conhecem o embuste não deixam de ser tocados pela “aura” resultante do processo de mistificação.
Porém, mesmo para os leigos mais céticos, há um mecanismo capaz de tolher a sua autonomia: frente ao judiciário, apenas os advogados podem falar. É claro que são abertas algumas exceções, especialmente em causas de pequeno valor econômico, mas, na maioria dos casos, a parte não tem direito de falar em seu próprio nome. Para ingressar no judiciário, as partes contam a sua versão ao advogado, que seleciona os pontos relevantes para o discurso judiciário, verte o problema em linguagem técnica e oferece uma petição “em nome” do seu representado.
Com isso, o processo judicial é um peça em que os papéis centrais são desempenhados pelo juiz e pelos advogados, restando às partes realizar algumas pontas. Mesmo quando elas deveriam desempenhar o papel central, ou seja, nas tentativas de conciliação institucionalmente previstas, elas são deslocadas dos terrenos em que se sentem seguras e introduzidas em um palco estranho, no qual é imensamente difícil exercer sua autonomia. Além disso, mesmo nessas horas, elas estão sob a orientação de seus advogados e sob a pressão institucional que, repetidas vezes, pressiona as partes em busca de um acordo que agilize o processo.
Enfim, o processo judicial não tem como deixar de tolher a autonomia das partes porque toda a sua construção visa a substituir essa autonomia pela autoridade do juiz e da lei. Portanto, toda decisão judicial envolve um grau de violência (mesmo que principalmente de violência simbólica) incompatível com o livre exercício da autonomia das partes. Embora seja certo que várias mudanças legislativas tenham buscado diminuir esse grau de violência (criando espaços maiores para a mediação, exigindo uma postura mais conciliadora pelos juízes, exigindo justificativas mais completas para as sentenças, etc.), essa violência contra a autonomia é estrutural no sistema de adjudicação e, nessa medida, não pode ser anulada, sequer reduzida significativamente.
Essa violência, contudo, apenas é sentida como um problema por aqueles que pretendem que os conflitos sejam resolvidos de maneira autônoma. Para muitos, ela é a garantia da justiça possível, pois o juiz pode impor à sociedade os padrões gerais definidos pelos poderes políticos constituídos ou mesmo inovar, buscando aplicar padrões de justiça que sejam aceitáveis de acordo com os valores constitucionais (ou qualquer outro padrão de justiça).
Além disso, a supressão da autonomia pode ser, em muitos casos, um preço razoável a pagar pelo encerramento de um litígio, pois, se o encerramento de alguns litígios pode agravar o conflito subjacente, há uma série de outros casos em que a manutenção do litígio é que tende a agravar o conflito. A solução heterônoma de litígios pode ser um mecanismo limitado de pacificação social, mas é uma estratégia que pode ser útil em muitos casos, ainda que seja para evitar a sensação de insegurança que litígios infindáveis tendem a gerar na sociedade.
Por fim, mesmo os mais ferrenhos defensores da orientação transformadora concedem que há vários casos em é preciso administrar a violência social segundo padrões heterônomos. Isso ocorre porque estabelecimento e a imposição de normas heterônomas não é, em si um problema, pois o exercício da violência institucionalizada, impondo o poder da sociedade organizada sobre os desejos de alguns indivíduos, é percebido como justificável em variadas hipóteses: é preciso punir certos crimes, é necessário coibir algumas práticas sociais, bem como é preciso cobrar determinadas multas e executar certas dívidas. Há, pois, muitas questões em que a mediação talvez possa ter alguma utilidade, mas certamente não conseguiria resolver os problemas, tanto pela ausência de uma dimensão afetiva quanto pela ausência de um comportamento cooperativo que é o seu pressuposto básico.
O problema, portanto, não é a mera existência das normas heterônomas ou dos juízes, mas a hegemonia de uma concepção reducionista que limita a atividade e o saber dos juristas à resolução heterocompositiva de litígios, com base na imposição dos padrões de conduta definidos nas regras estatais. Observe-se, pois, que, se as críticas mais severas constantes deste texto foram dirigidas ao modelo judicial, não se trata de uma recusa desse método como sendo a priori ineficiente ou equivocado, pois tanto a sua eficiência como a sua adequação somente podem ser pensadas em relação a alguns tipos específicos de problemas, sendo insensato tanto culpar este método por não resolver todas as questões quanto acusá-lo de não resolver nenhuma. Se optei por criticá-lo com mais minúcia foi porque, apesar de o senso comum reconhecer a existência uma “crise” no judiciário, normalmente pensa-se que a solução dessa crise está no aperfeiçoamento dos processos de adjudicação, sem levar devidamente em conta que certas limitações são inerentes à própria estrutura do método judicial de heterocomposição.
A jurisdição ainda é entendida como o método jurídico por excelência, e todas as outras estratégias de composição são normalmente identificadas como alternativas que teriam por função desafogar o sistema judiciário, para que ele pudesse cumprir adequadamente suas funções. Portanto, este texto não é voltado contra o modelo judicial (o que seria uma estupidez), mas contra a concepção jurídica tradicional, que tanto sobrevaloriza as suas vantagens quanto oculta os seus limites.

VII - Conclusão: pela autonomia dos métodos

Desde a formação dos Estados de Direito contemporâneos, com sua pretensão monopolística, o modelo judicial passou a ser visto como o modo jurídico por excelência, senão como o único modelo jurídico de resolução de conflitos. O pressuposto básico desse modelo é o de que as melhores soluções seriam conseguidas a partir de uma aplicação técnica de normas jurídica preestabelecidas, por um corpo de magistrados com formação científica adequada, que disporia de critérios hermenêuticos que lhes possibilitaria extrair do direito positivo uma solução correta para cada caso juridicamente relevante. Esse tipo de posicionamento coloca toda a responsabilidade pela decisão justa no legislador (que deve fazer a lei de forma adequada) e no juiz (que deve aplicar a lei da maneira correta).
Com isso, tal modelo centraliza toda a sua atenção nas normas jurídicas (em sua criação e aplicação) e na resolução do litígio (que passa a ser o recorte do conflito que se pode resolver com base nas regras do direito positivo), perdendo de vista a multidimensionalidade do conflito e privilegia especialmente a análise de litígios que não têm um elemento valorativo ou emotivo muito forte.
Nas últimas décadas, esse modelo tem entrado em crise por uma série de motivos inter-relacionados. Por um lado, o modelo funcionava razoavelmente bem, desde que não houvesse muitos conflitos para resolver judicialmente, o que implicava a existência de mecanismos socialmente eficazes de solução não-judicial de conflitos ou que não houvesse uma possibilidade prática efetiva de levar uma série de conflitos à apreciação do poder judiciário.
Porém, quando cresceram concomitantemente o nível de conflituosidade não resolvida por mecanismos sociais e a demanda por soluções jurisdicionais, o Poder Judiciário não se mostrou capaz de resolver o imenso número de ações judiciais em tempo hábil. Quanto mais aumentou o número de direitos garantidos aos cidadãos (o que ocorreu especialmente nos Estados organizados pelo modelo Social ou Democrático) e estabeleceu-se uma consciência de que fazia parte da cidadania o direito de acesso ao Judiciário, mas o próprio Judiciário viu-se incapaz de oferecer à sociedade a resposta que o modelo lhe prometia.
Além disso, o modelo de resolução de conflitos baseado na aplicação de regras a casos concretos tende a desligar o litígio do conflito e a optar por padrões formalistas que não atendem devidamente aos anseios sociais de justiça, especialmente quando as próprias normas não encontram-se devidamente adaptadas às realidades sociais cambiantes. Ademais, percebeu-se que uma série de questões estavam ligados a conflitos multidimensionais, nos quais a solução de um eventual litígio que aflore não representa uma diminuição real do nível de conflituosidade nas relações sociais. Tornaram-se, então, patentes as limitações do modelo judicial como forma de diminuição das tensões existentes nas relações sociais conflituosas.
Embora não caiba nos limites deste trabalho aprofundar a chamada “crise do Judiciário”, a percepção dessa crise (seja ela real ou não) fez com que muitas pessoas passassem a evitar levar suas questões ao Poder Judiciário e com que o próprio Estado passasse a estimular a resolução não judicial dos conflitos. Com isso, ganharam importância os chamados modos alternativos de solução de conflitos, também chamados, por influência da teoria norte-americana, de métodos de RAD. Observe-se que, se eles são considerados alternativos, é porque o modelo vigente coloca a jurisdição como o método padrão, de forma que os desenvolvimentos da mediação, da conciliação e da arbitragem são vistos por muitos como uma forma de evitar uma sobrecarga do sistema judicial ou de resolver conflitos que não recebem resposta adequada de modelos adjudicatórios estatais.
Porém, parece chegado o momento em que esses vários métodos conquistaram autonomia suficiente para que mereçam ser chamados não de métodos alternativos, mas simplesmente de métodos (ou modos, modelos, espécies, mecanismos, estratégias, etc.), pois cada um desses modelos tem suas vantagens e desvantagens, resolvendo bem alguns conflitos, sendo limitados em outros, e até mesmo danosos em alguns casos.
É preciso, portanto, rever a nossa cartografia tradicional e reconstruir um mapa geral, em que todos os métodos sejam compreendidos como estratégias específicas no tratamento jurídico da conflituosidade social, e não mais como elementos auxiliares da jurisdição na resolução das disputas ou litígios. Somente com essa nova cartografia será possível aos juristas ter consciência adequada das virtudes e limitações de cada um desses métodos e, conseqüentemente, tornar-se capaz de escolher e combinar as diversas estratégias compositivas, de modo a auxiliar as pessoas a lidar adequadamente com as suas diferenças e com a conflituosidade que permeia a vida de todos nós.

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[*] Texto originalmente publicado em Azevedo, André Gomma de (org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. 1 ed. Brasília: Editora Grupos de Pesquisa, 2003, v. 3, p. 161-201, livro cujo texto integral está disponível em http://www.unb.br/fd/gt/links/artigos.htm.
[2] Utilizamos aqui a metáfora cartográfica, que foi especialmente desenvolvida nas obras de Guattari e Deleuze e recentemente retomada por Boaventura. [Vide Guattari, Cartografias esquizoanalíticas, pp. 31 e ss.,  Deleuze e Guattari, Mil platôs, vol. I,  e Santos, A crítica da razão indolente, pp. 189 e ss.]
[3] Nas teorias ligadas à cultura anglo-saxã ou por ela influenciadas, essa dimensão constitutiva (e não apenas representativa) da linguagem é normalmente vinculada a uma concepção por eles chamada de social construcionist theory (teoria do construtivismo social). Porém, são várias as concepções que, desde o início do século XX, especialmente a partir do segundo Wittgenstein e de Heidegger, acentuam a dimensão constitutiva (ou construtiva) da linguagem.
[4] Schnitman, Nuevos paradigmas em la resolución de conflictos, p. 31.
[5] Vide Warat, O ofício do mediador, e Bush e Folger, La mediación transformadora y la intervención de terceros.
[6] Vide Winslade e Monk, Narrative mediation e Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação.
[7] Pois parece-me uma ingenuidade epistemológica extemporânea confundir o mapa com o mundo, tal como fizeram os grandes defensores das teorias gerais dos dois séculos passados e suas releituras atuais, como a tentativa de Remo Entelman de construir uma teoria geral do conflito nos moldes formalistas da Teoria Pura do Direito de Kelsen. [Vide Entelman, Teoría de conflictos: hacia un nuevo paradigma]
[8] Cabe observar que o pensamento estratégico não é necessariamente individualista, pois mesmo o mais altruísta dos modos de pensar possui uma dimensão estratégica, no sentido de que envolve um questionamento acerca das conseqüências desejáveis e dos melhores meios de alcançá-las. Tampouco o utilitarismo é necessariamente egoísta, pois, ao exemplo do que John Stuart Mill [Mill, Utilitarismo], é possível pensar a utilidade como social e não individual. Porém, o modelo jurídico a que nos referimos pressupõe que o homem é um indivíduo que sempre age racionalmente para atingir seus interesses individuais, o que implica um raciocínio simultaneamente estratégico e individualista.
Penso que os termos mais significativos para indicar esse modelo seriam individualista ou indiferente, mas, como essas palavras são demasiadamente ambíguas na linguagem comum, creio que o seu uso tenderia a acarretar mais confusão que entendimento. Em especial, há o problema de a palavra “indiferente”, isoladamente, não explicar que esse agir seria indiferente ao outro, mas não em relação interesses individuais do próprio agente. Optei, então, em utilizar a expressão estratégico-indiferente para fazer referência a esse modo de agir, apesar de ela ser ela demasiadamente longa e cacofônica. De toda forma, devo confessar que, em alguns, pontos termino por privilegiar a eufonia ao rigor e a falar apenas em agir meramente estratégico para me referir ao agir estratégico individualista voltado tão-somente para a garantia dos interesses individuais do agente.
[9] Para uma descrição geral da teoria dos jogos, especialmente do equilíbrio de Nash, vide Almeida, A teoria dos jogos, item 2.1.
[10] Nessa medida, creio ser correto afirmar que a teoria dos jogos tem uma matriz individualista porque, apesar de basear-se em uma teoria formal de análise matemática, o seu conceito operativo fundamental é o de interesse individual, que não é um conceito meramente formal, nem poderia sê-lo, para que a teoria tivesse alguma aplicabilidade prática e representasse algo além de uma aplicação específica das regras de análise combinatória. Isso não significa, porém, que a teoria dos jogos seja completamente inaplicável a conflitos que envolvem um agir cooperativo (pois mesmo nesses conflitos existe uma dimensão estratégica), mas que ela não é capaz de abarcar toda a complexidade desses conflitos, dado que a sua aplicação implica a redução do vínculo de cooperação a um interesse individual na satisfação do outro.
[11] Acerca da destrutividade, considero pertinente a observação de Warat de que “sentimentos de ternura e agressivos, em diversos graus, encontram-se em todas as relações. A destrutividade, entretanto, é uma situação limite que tende ao desaparecimento do outro, uma tentativa radical do medo para anular a problemática que os encontros com o outro sempre colocam.” [vide Warat, O ofício do mediador, p. 63]
[12] Convém ressaltar que desejar a felicidade do outro (ou, melhor dito, o que achamos que deveria ser a felicidade para o outro) nem sempre é um índice de comprometimento, pois não é incomum que desejemos o bem do outro principalmente como uma forma de realizarmos apenas os nossos desejos individuais, de tal forma que a realização da pessoa do outro nos interesse menos que a nossa realização por meio delas.
[13] Torna-se clara, aqui, uma aproximação da moral cristã e da teoria ética kantiana, que acentuam que a moralidade está fundada em um respeito sincero pelo outro em si mesmo considerado, condenando como imoral (ou ao menos amoral) tratar outras pessoas apenas como objetos em um jogo estratégico de interesses.
[14] Santos, O discurso e o poder, p. 22.
[15] O que não quer dizer que ela é sempre fraca ou inexistente, pois as concepções éticas dominantes tendem a gerar algum grau de comprometimento positivo de uma pessoa com os seres humanos em geral.
[16] Que pode ser caracterizado como uma arbitragem, como veremos a seguir.
[17] Santos, O discurso e o poder, p. 23.
[18] Como veremos, nesse caso o terceiro não atuaria como juiz nem como árbitro, mas como conciliador.
[19] Utilizamos aqui o termo assistente como um gênero do qual fazem parte tanto os conciliadores como os mediadores, que são os tipos de terceiros imparciais em uma autocomposição assistida.
[20] Vide Pires, Mediação e Conciliação, p. 133.
[21] Para um bom panorama da diversidade no uso dos termos mediação e conciliação, vide Azevedo, Perspectivas metodológicas do processo de mediação, nota 12, e Pires, Mediação e Conciliação, pp. 133 e ss.
[22] Sobre essa postura, vide Pires, Mediação e Conciliação, p. 126.
[23] Vide Cooley, A advocacia na mediação, p. 26.
[24] Esse modelo é chamado de tradicional-lineal por Marinés Suares [Suares, Mediación, p. 58],
[25] Este modelo é minuciosamente descrito em Riskin, Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador: um padrão para iniciantes, pp. 63 e ss.
[26] Convém ressaltar que, embora Riskin considere que o mediador avaliativo pode pressionar as partes para realizarem um acordo, defendo no texto a idéia de que, ao pressionar a parte, o terceiro passa a atuar como negociador o como uma nova parte, e não como um mediador.
[27] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 9.
[28] Marinés Suares identifica dois modelos que atuam nesse mesmo sentido, o transformativo de Bush e Folger e o circular-narrativo de Sara Cobb. Porém, creio que as diferenças existentes entre eles os caracterizam como variantes de uma concentração no conflito e não como modelos que mereçam ser tratados distintamente. [Suares, Mediación, pp. 59 e ss.],
[29] Vide Azevedo, Perspectivas metodológicas do processo de mediação.
[30] Warat, O ofício do mediador, p. 76.
[31] Winslade e Monk, Narrative mediation, p. XI.
[32] Concepções essas tão incompreendidas por aqueles que tentam transformar o direito em técnica racionalmente aplicável ou que compartilham a idéia de que um estatuto epistemológico adequado somente pode ser conquistado por um saber que seja purificado do desejo e do amor.
[33] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 9.
[34] Warat, O ofício do mediador, p. 82.
[35] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 16.
[36] Convém ressaltar que a orientação acordista foi definida no final do ponto anterior.
[37] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 13.
[38] Warat, O ofício do mediador, p. 31.
[39] Warat, O ofício do mediador, p. 50.
[40] Esse tipo de autoridade é própria dos modelos heterocompositivos, como veremos a seguir.
[41] E é bastante esclarecedor o fato de que a teoria processual utilize justamente a idéia de substituição para caracterizar a função judicial.
[42] Incrivelmente, nas sessões judiciais de conciliação, especialmente nos juizados penais, muitas das partes não têm consciência de que elas podem simplesmente negar-se a fazer o acordo.
[43] Nesse ponto, cabe reconhecer a sensibilidade de alguns juízes que, percebendo que o nível de conflitividade interna das pessoas envolvidas em um litígio é muito grande, marcam a audiência de conciliação para uma data distante, para que a pessoa tenha tempo de amadurecer seus desejos e recuperar a estabilidade emocional. Porém, em casos que isso fosse necessário, provavelmente a utilização de estratégias de mediação seria mais eficiente que o simples decurso do tempo.
[44] Como costuma afirmar Warat, as promessas de amor são feitas para não serem cumpridas, pois, quando um amante solicita do outro que lhe prometa o amor eterno, é porque normalmente o amor já deixou de existir. Nesse ponto, a promessa não resolve nem transforma o conflito, apenas o encobre ou adia seu afloramento.
[45] Warat, Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 18.
[46] Em casos desse tipo, podemos encontrar tanto ações verdadeiramente comprometidas, em que uma pessoa deseja preservar os interesses das outros por julgá-los dignos de valor e respeito, quanto ações pseudo-comprometidas, em que há um discurso de comprometimento, mas no qual a pessoa simplesmente calcula que deve respeitar os desejos de terceiros para que eles não venham a prejudicar os seus próprios. De um modo ou de outro, esses exemplos evidenciam que pode haver uma dimensão estratégica forte tanto em uma quanto em outra figura, pois mesmo o agir verdadeiramente comprometido envolve um cálculo de conseqüências para que se possa respeitar os sentimentos de desejos das outras pessoas.
[47] Autotutela que, no direito internacional, é feita por meio da imposição de restrições unilaterais, tais como embargos ou imposição de barreiras tarifárias, ou pela guerra.
[48] Embora, como em qualquer relação de sinonímia, os significados não são absolutamente idênticos e os termos não são absolutamente intercambiáveis.
[49] Como observou Óscar Correas, a juridicidade é anterior às normas gerais e abstratas, ou seja, os juízes antecederam as leis. As primeiras pessoas dotadas de autoridade jurisdicional não estavam a serviço de um sistema de regras, mas eram simplesmente chefes políticos ou pessoas com ascendência moral, comprometidos a oferecer uma solução adequada e não a oferecer uma solução conforme regras positivadas. Assim, é possível pensar a jurisdição independentemente da legislação — embora essas funções estejam interligadas na sociedade contemporânea. [Vide Correas, Crítica da ideologia jurídica, p. 62]
[50] E ressaltamos que réu é o nome genérico dado àquele que é processado judicialmente, não sendo usado apenas para designar quem é acusado de um crime.
[51] Esse posicionamento é defendido, em especial, pelas as teorias vinculadas ao realismo jurídico escandinavo e norte-americano. Sobre realismo jurídico, vide Costa, Introdução ao direito, pp. 286 e ss., Ross, Direito e justiça, e Solon, Dever jurídico e teoria realista do direito.
[52] São excepcionais, por exemplo, as questões relativas à punição, nas quais tipicamente é vedada a possibilidade de composição.
[53] O que não é o caso, por exemplo, das mediações e conciliações efetuadas dentro da estrutura do Poder Judiciário, especialmente nos juizados especiais, pois a atuação do Estado precisa observar o princípio da publicidade, exceto em casos especiais, como os que envolvem direito de família.
[54] O Judiciário somente pode avaliar se a decisão foi tomada nos termos do compromisso arbitral, mas não cabe ao juiz avaliar se a decisão foi a mais adequada, pois isso representaria interferir no campo reservado à autonomia do árbitro.
[55] Embora seja permitida a arbitragem por eqüidade, trata-se de uma hipótese excepcional.
[56] Warat, O ofício do mediador, p. 79.
[57] Um aprofundamento maior dessa questão foi feito na análise do papel do conciliador que, tal como o juiz, centra suas atenções no conflito e não no litígio.
[58] Convém ressaltar que, nesse texto, embora Boaventura oponha mediação e adjudicação e não proponha qualquer diferença entre mediação e conciliação, ele ressalta os aspectos estratégicos da negociação, o que aproxima o sentido desse termo mais do conceito waratiano de conciliação que do de mediação.
[59] Santos, O discurso e o poder, p. 23.


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